por Oswaldo
Faustino
"Quando morre um Griot, é uma biblioteca que desaparece".
Esta é uma história contada por um Griot .
Fala de Harmonia e da Desarmonia entre instrumentos musicais africanos que
sonham
reinar, brilhando em solos sem fim.
reinar, brilhando em solos sem fim.
Você sabe o que pode acontecer numa
noite de Lua nova? Numa noite dessas, em que a Lua se
veste de preto, o velho Griot tranca a porta do quartinho, onde guarda seus instrumentos
musicais, e se retira para repousar em seus próprios aposentos.
Ele faz uma oração a Allah, mas não se
deita... Antes, lança um pó sobre as brasas do pote de barro, que ajudam a
aquecer o frio, e uma fumaça intensa e perfumada se lança em direção à morada eterna dos deuses de seus
antepassados e dos antepassados de seus deuses.
O breu da noite, lá fora, só não é tão
negro quando o breu lá dentro do quartinho dos instrumentos do Griot.
De repente, o silêncio é quebrado. Sons
suaves, quase silenciosos, começam a vibrar e a se entrelaçar em acordes
magníficos. Pouco a pouco, uma melodia, jamais ouvida, toma conta do ar.
É a Kora, a sonora harpa-alaúde das terras de África. Exibida, como ela só, deixa-se vibrar em todas
as suas 21 cordas de pele de antílope. E é lindo, muito lindo de se ouvir.
Parece que as cordas são dedilhadas por centenas de belas mãos celestiais. Sente-se no ar, o bailado de um magnífico espetáculo: o Orum se casando com o Ayê.
Aquele lindo som vai acordando um a um os
demais instrumentos. A bela melodia faz com que, apesar do sono, juntamente
com os olhos se abram sorrisos. Um olha para outro e simplesmente sorri.
A Kora vai se
enchendo de orgulho. De olhos fechados toca mais e mais, sorrindo também. E é assim que todos aqueles sorrisos iluminam o quartinho de instrumentos. De repente, do mesmo jeito que começou,
a Kora para de tocar. Sua bela cabaça começa a se agitar com um pensamento:
“Já pensou se eu fosse um ser humano? Se eu
fosse igualzinha aos humanos da aldeia em que vivemos? Ai, como seria bom! Eu
não precisaria nunca mais de nenhum artista para fazer minhas cordas vibrarem.
Eu mesma as vibraria e criaria maravilhosas canções. Vocês não concordam comigo?”
“Sim, sim – responde o Balafom, enquanto seus
martelinhos de pau-ferro saltitam sobre o teclado de madeira nobre e
avermelhada –. Seria a coisa mais linda. se nós fossemos gente. Eu contaria as histórias que o velho Griot conta, percorrendo aldeias, reinos e os lugares mais
distantes, saltando sobre minhas próprias pernas. Eu poderia tocar, cantar e
dançar ao mesmo tempo.”
“Boooom
demaisss!!!”, comenta com sua voz baixo-profundo o Bolon, vibrando suas quatro grossas cordas, cujo som é amplificado em seu bojo
coberto de pele e pelos. “Fooosse gente, eu trovejaria a cada manhã, para acordar todos esses preguiçooosos”, comenta gargalhando.
“Sim... Boong. – complementa o Tambor
– Gente pode tudo... Boong. Gente pensa... Boong. Gente decide... Boong. Gente
manda e desmanda... Boong”.
É quando se ouve, suave, a Kalimba:
“E
eu? Tudo o que eu mais queria na vida era vibrar minhas palhetinhas metálicas a meu
bel prazer. Uma a uma, todas juntas. Imitar os sons dos pássaros. Cantar
minhas próprias canções, nascidas do fundo de minha cabaça.”
E, assim, cada um dos instrumentos vai confessando que sempre sonhou em se tornar um ser humano. E o quanto é bom
sonhar esse sonho.
Até que a Kora
perde a paciência e grita: “Sabem o que seria melhor, se nós fossemos
humanos? É que eu seria uma Rainha!”
“Sim... Rainha! Porque, no mundo dos
humanos, a Rainha é o ser mais poderoso. A pessoa mais bela, mais elegante,
mais talentosa. Ouçam as minhas 21 cordas e me digam: Quem é mais poderosa
que eu?"
“Eu! –
berra o Berimbau
– Poderoso e talentoso. Você precisa de 21 cordas. Eu... – sorri com desdém – Ouça! Com uma só corda, uma vareta, um dobrão, um caxixi e uma cabaça, eu vibro
a própria sonoridade do coração humano. Meu som percorre o mundo e faz a roda
dançar, jogar e lutar, ao mesmo tempo. Eu sou a voz da Capoeira!”
“Você?! – indaga, com ironia, o Atabaque
– Você não passa de um arquinho pretensioso. Aliás, para mim, cordas só têm uma
serventia: enforcar os prepotentes que atravessam o meu caminho. O que é o teu
som diante do meu? Eu comando o ritmo da Capoeira. E vou muito mais além: são
meus toques que chamam os Orixás e os põem para dançar... toque por toque.”
Impossível de se imaginar o que faz o Atabaque, nesse momento. Desfila ali, naquele momento, todos os toques conhecidos e inventa mais alguns. Ao
terminar apura os ouvidos para ouvir a aclamação. Ele tem a certeza de que é o Rei dos instrumentos musicais.
“Nhem-nhem-nhem, nhem-nhem-nhem... – gargalha o Djembê –. Quem aqui é que tem ginga? Quem tem o molejo?"
Ah! Não prestou... Naquele momento, todos os instrumentos do quartinho começam a tocar, ao
mesmo tempo. E um quer tocar mais alto que o outro. Se aquilo é um reino,
ali é o castelo do caos. Uma barulheira sem fim!
Ainda se juntam aqueles que não haviam se
manifestaram: o Agogô,
o Reco-reco,
o Xequerê,
o Afoxé,
o Ganzá...
A Cuíca
ronca fino, ronca grosso, choraminga e emenda um longo gemido. E a
balbúrdia se torna ensurdecedora...
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O Griot acorda assustado. Mal joga uma
túnica sobre o corpo nu e corre pro
terreiro para ver o que está acontecendo. E o que ele vê o faz arrepiar-se da
cabeça aos pés. Do outro lado, avista centenas de tochas acesas.
A
barulheira acordou todos os guerreiros da aldeia. Eles chegaram muito cansados das batalhas para proteger o reino. Só queriam repousar em
suas redes, nos braços das mulheres amadas. Mas foram impedidos por aquele
ruído infernal. De lanças, machados e porretes nas mãos,
alguns já se preparam para destruir, arrasar, aquele quartinho com tudo o que
houver dentro.
E lá no interior do
quartinho, os instrumentos, caladinhos, estão apavorados. Cada qual caça um cantinho
para se esconder. Tremem feito vara verde. Banhados de suor, cada um está mais
de-sa-fi-na-do que o outro.
O Griot já antevê o fogo arrasando tudo,
queimando séculos de histórias contadas e cantadas, não só por ele, mas por seu
pai, que as recebeu do pai dele e este de seu próprio pai, de geração a geração.
Histórias sempre acompanhadas, ora por um instrumento musical, ora por outro.
“Parem! – ordena aos guerreiros – Não
matem as histórias do nosso povo! Se o fizerem estarão matando a nós todos e
aos nossos descendentes, pois nos tornaremos árvores sem raiz. Aí, vamos secar
e virar pó.”
Foi por pouco, muito
pouco. Um a um, os guerreiros começam a se afastar e a voltar para as próprias
moradas, ávidos pela rede e pelos braços das amadas.
O Griot abre a porta do quartinho, corre os olhos e confere instrumento por instrumento.
Estão todos ali, caladinhos, envergonhados. Sem balbuciar uma só palavra, apenas
com o olhar, ele os adverte: “Quem quer
ser o que não é, sempre corre o risco de deixar de ser o que é. E de virar um...
nada”.
Olha! Demora muito para cada um daqueles
instrumentos voltar a tocar de novo. Um tempão depois, muito timidamente se
ouve um som. É um som quase silencioso. “Psssssss Hummmmmm!...”... E, pouco a
pouco, eles vão redescobrindo o próprio som e o verdadeiro sentido da palavra Harmonia: