segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Sonhos de um menino do Recife*




Por Oswaldo Faustino
“Sai de cima dessa pedra, moleque! Fica aí só olhando o mar!
Vem pra dentro cortar sola! Vem aprender o meu ofício!
Vem aprender trabalhar”...

Pois é, o sapateiro Manuel Abílio Trindade não entendia porque o pequeno Francisco Solano, seu filho, estava sempre olhando para o alto, sempre de frente para aquele marzão, imenso, sem fim. “Eta moleque que vive sonhando! Não quer mesmo botar os pés no chão!”.

Seu Manuel dança Pastoril e Bumba-meu-boi, sempre à noite, quando deixa seu trabalho na sapataria. Só depois vai pra casa beijar sua negra Emerenciana, quituteira de mão cheia, e atacar as surpresas deliciosas das panelas de ferro, sobre o fogão de lenha. Emerenciana não sabe ler, mas pede ao menino, que já aprendeu as primeiras letras, pra que leia pra ela os livrinhos de novelas e poesias de Cordel.
Essa história é uma história acontecida de verdade, num lugar chamado Recife, uma cidade bonita como ela só, no comecinho do século 20. Você conhece Recife? Fica lá no Pernambuco, no Nordeste desse Brasil. Conhece, não? Então tem de conhecer.
É cortada por dois rios: o Capibaribe e o Beberibe. O Capibaribe vem de lá da Serra do Jacarará, terra de capivara e porco do mato. Se arrasta pelo sertão, luta com a seca caminho afora, corta todo o Pernambuco, até ficar forte e generoso, trazendo peixe pra pescar e barcos repletos de carne de sol e farinha, só pra alimentar esse povo do Recife. O menino Francisco Solano sabe disso e ama o Capibaribe, rio valente, lutador, sobrevivente e vitorioso como ele.
O Beberibe não vem de longe, não. Esse vem de ali de perto. Ali de Camarigibe. É filho do Rio das Pacas que se casou com o Araçá. Rio malandro, vem gingando. Seus barcos trazem as meninas bonitas lá do alto, de Olinda. Oh, lindas meninas! Como não amar esse rio?
O que o resto do Brasil não sabe, mas sabe quem é do Recife, é que o Capibaribe se encontra com o Beberibe para formar o mar. Acredite se quiser são esses dois que inundam o oceano, esse mundo de água que separa as terras do Recife das terras do coração de Solano, as terras da África, que ele só conhece através das histórias contadas por sua avó.
“Menino, vem bater sola!”, berra o pai sapateiro, mandando martelo no couro, estendido na bigorna: Plá... Plá.. Plá... Mas o coração de Solano bate uma outra batida. A batida dos couros dos tambores do Maracatu: Tum tá - Tum tá - Tum tátátátá - Tum tá - Tum tá -  Tum tátátátá.... Tum tá - Tum tá - Tum tátátátá - Tum tá - Tum tá -  Tum tátátátá...
E seus olhos vislumbram o cortejo dos Reis e das Rainhas do Congo, gloriosos, dominando a cidade... lá vêm as porta-estandartes, empunhando os pavilhões. Olha lá, as Damas do Paço, com bonequinhas na mão. A boneca é a calunga, preta como Solano, girando, girando, girando... assim como gira o mundo.. assim como ele quer girar... Já entregaram os agrados pra Nossa Senhora do Rosário e pra São Benedito... agora é só festejar.
E cortejo segue em frente: “Olha o Rei! Olha a Rainha! É bonito como que! Lá vêm os caboclos lanceiros, guerreiros... prontos pra guerra, mas são de paz...” Maracatu das maracas, chocalhos que índio fez, dos ganzás, dos agogôs, das alfaias, tambores negros batendo.. agora é a nossa vez... olha as baianas rodando! Olha o baliza, que nas mãos gira um pau, que atira pro alto, bem alto! E pega e gira de novo, e de novo atira mais alto... “Vai cair! Vai cair! Vai cair!”... cai nada, que o moço é dos bons. Solano sabe que o povo nunca deixa a baliza cair...
“O que tu fica pensando aí no alto da pedra, Solano?”... o pai não entende os sonhos do filho. “Bota esse pé no chão, moleque!”
Pé no chão? Só se for pra dançar frevo... frevê, frevá... dançar até o sol raiar... atira o corpo prum lado, cruza as pernas e se atira pro outro... ergue a sombrinha e dança... “Param, param, param, parampam.. pam pam pam... Param, param, param, parampam.. pam pam Paaaaam...”
Para de olhar pro alto, menino! – agora é a mãe, Emerenciana – Vem tomar café. Vem comer dos meus quitutes! Olha aqui embaixo, um pouco que seja, menino!



Não. Solano não pode olhar pro chão. Quem olha pro chão anda de cabeça baixa. E ele jurou pra si mesmo que jamais abaixará a cabeça.   
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu sou poeta do povo
Olorum Ekê

A minha bandeira
É de cor de sangue
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Da cor da revolução
Olorum Ekê

Meus avós foram escravos
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu ainda escravo sou
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Os meus filhos não serão
Olorum Ekê
Olorum Ekê         
“Olorum, o orixá que criou o mundo. Esse mundo grande, gigante, maior que esse oceano que separa o Brasil da África, que um dia eu hei de juntar de novo”... assim sonhava o menino. Menino Solano, menino pretinho, que desde pequeno descobriu que não quer viver no mangue, não quer caçar caranguejo, na lama, pra vender por uns trocados. E rejeitou as correntes da escravidão da miséria...

Muito tempo antes dessa história. Lá num país chamado Paraguai, teve um general chamado Francisco Solano Lòpes. Ele foi o primeiro presidente socialista da América Latina. O presidente do Paraguai, que o Brasil massacrou. Sob o comando de Caxias, um exército de escravos lutou contra o Paraguai, com a promessa de liberdade, depois da vitória. A vitória veio. A liberdade não. Seu Manuel Abílio nasceu muito depois dessa guerra. Mas é homem consciente e, por isso, batizou o filho com o nome de Francisco Solano, igualzinho ao socialista, que o Brasil massacrou.
Não por acaso o moleque, que um dia se encantou com os integralistas, pelo seu nacionalismo, se tornou, comunista, ou seria socialista? “Sei lá. Só sei que tem a ver com povo e povão é o que eu sou e sempre serei.” Dessa certeza, ele não tem a menor dúvida:
“Eu sou Solano. Solano da liberdade. E quando eu tiver um filho há de se chamar Liberto! Liberto Solano Trindade!”. 
Maria Margarida, sua amada, cristã luterana, terapeuta ocupacional e futura coreógrafa, descobre, com o tempo, que mesmo arrastando esse VENTO FORTE AFRICANO para os cultos, jamais o transformará em brisa. 
Da Bíblia vem o nome da filha Raquel, artista como o pai. Outra filha ganha o nome da desafiadora lady despojada de tudo -- inclusive das vestimentas -- em favor de seu povo, em tempos longínquos, na Inglaterra, Godiva. E aquele que receberá o honroso nome de Francisco Solano Trindade Filho, morrerá nos porões da ditadura militar.
Para Maria Margarida, melhor mesmo é seguir com essa ventania pelas experiências do Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos, e depois às reuniões com o intelectual Édson Carneiro, que gerarão o Teatro Popular Brasileiro e, com ele, teatralizar o bumba-meu-boi, os caboclinhos, o coco e a capoeira. E seguirem com o Brasilianas, grupo de dança que ele criará com Haroldo Costa, para percorrerem a Europa afora.
São esses os sonhos que brotam ali sobre a pedra em frente ao mar. Sonha. Sonha em voar como as gaivotas. Sonha em chegar do outro lado do oceano, por todas as terras de todos os povos, e, quem sabe, chegar às terras de seus ancestrais... negros como ele:

Sou negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh`alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gongôs e agogôs

Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu

Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso

Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou

Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio

e o desejo de libertação

Seus sentimentos e pensamentos se manifestam em poemas. Assim, seus sonhos se transformam em livros: 
Poemas negros (1936); Poemas d´uma vida simples (1944); Seis tempos de poesia (1958); e Cantares ao meu povo (1961). Outros póstumos virão. E Solano se torna "poeta do povo".

E sonhando com libertação, sonha em mudar pro Rio de Janeiro, pra Minas Gerais, pro Paraná, pra São Paulo, em fazer poemas, dançar as danças do povo, divulgar a cultura de seu povo, pintar quadros, escrever e dirigir peças de teatro, sonha que vai ser ator, vai fazer cinema – “Agulha no Palheiro” (1952), de Alex Viani; “Mistérios da Ilha de Vênus” (1960), de Douglas Fowley; “O Santo Milagroso” (1966), de Carlos Coimbra; e A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos. 
Vai passar pelo Teatro experimental do Negros, criado por Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos. Vai criar, com Haroldo Costa, o Teatro Popular Brasileiro e viajar mundo afora com o espetáculo "Brasilianas".  



Sonha em criar uma cidade toda voltada pras artes, onde as manifestações populares não sejam vistas como uma coisa exótica, folclórica, primitiva, mas como coisa do povo e da qual o povo poderá e deverá se beneficiar: 

Ouço um novo canto,
Que sai da boca,
de todas as raças,
Com infinidade de ritmos...
Canto que faz dançar,
Todos os corpos,
De formas,
E coloridos diferentes...
Canto que faz vibrar,
Todas as almas,
De crenças,
E idealismos desiguais...
É o canto da liberdade,
Que está penetrando,
Em todos os ouvidos...
“Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só...” Por isso o menino sonha que vai se juntar a outros sonhadores, como ele, para tornar seu sonho realidade. E vai plantar no coração de São Paulo, uma terra de artes e artistas. É quando conhece uma cidadezinha que já foi um aldeamento indígena, que se chamava Bohi, depois M'Boi, e por fim Embu... sim... e o povo vai praticar a arte de viver livre e criativamente... será a Embu das Artes...
Mesmo depois de Solano tomar o rumo das estrelas, suas sementes darão continuidade a essa missão... Raquel, a Kambinda, Liberto, Vitor, Zinho, Regina, Dadá e todos os demais que vierem, seguem semeando as sementes da Solanidade, perpetuando os Trindade...  
Aí, ninguém mais vai segurar os sonhos desse menino. Ele vai correr o Universo com seus poemas, suas pinturas, suas danças e seu teatro popular. Vai levando o trem da história, o menino maquinista, levando filhos e netos rumo a uma grande conquista. E o mundo todo há de conhecer esse trem...










Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome 
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu 
Não... ninguém há de calar essa voz nascida no Recife, em 1908. Essa voz que já passou muito tempo dos 100 anos. Que fará mais 100 e 100 mais... quantos 100 forem necessários para conquistar e enegrecer um a um todos os corações dos habitantes deste planeta. Até que se realizem todos os sonhos desse menino do Recife.
Três vivas para Solano Trindade! Viva! Viva! Viva!

Salve Solano Trindade! Salve a alma e o canto maior desse povo afro-brasileiro! Salve aquele que trazia nas veias o sonho de 

“PESQUISAR NA FONTE DE ORIGEM E DEVOLVER AO POVO EM FORMA DE ARTE "

Foi aí que Nei Lopes e Wilson Moreira transformaram o sonho de Solano Trindade num samba para o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, fundado em 1975, por Antonio Cadeia Filho. Samba que Roberto Ribeiro consagrou: 

*Texto solo criado especialmente para interpretação do grande ator João Acaiabe