domingo, 18 de abril de 2021

COM LICENÇA, SEU BENTINHO!

Meu saudoso amigo, o ator e contador de histórias JOÃO ACAIABE, volta e meia, me pedia que escrevesse uma história para ele contar para as crianças. Como ele viveu o Tio Barnabé, no Sítio do Picapau Amarelo, na TV Globo, um dia escrevi para ele este conto:   


Toc... Toc...Toc...

Aquela batida na porta fez escritor interromper seu almoço. Mesmo mal-humorado, ele gritou:

– A porta está aberta... pode entrar!

A porta se escancarou e a luz do Sol, lá fora, revelou a imagem de um homem velhinho como eu, de barbas brancas, com roupas humilde e chapéu de palha nas mãos, seguro em frente ao peito...

– Com licença, Seu Bentinho!

Ao ver aquele homem, Lobato, o escritor, sentiu que o conhecia, mas não se lembrava de onde. Procurou que procurou em suas lembranças, até que se viu menino, passando férias no sítio de sua avó, Dona Benta, lá em Taubaté, no Vale do Paraíba. Sim. Só podia ser ele, o carroceiro que lhe contava histórias, lá no sitio, o Tio Barnabé.

– Que surpresa, Barnabé! Há quanto anos! O que te traz aqui no Rio de Janeiro?

– Sabe o que é, Seu Bentinho? Eu vim lá do sítio pra contar uma coisa que eu vi, ontem, e que me deixou muito triste.

– Triste? O que foi Barnabé? O que fizeram a você?

– Não foi comigo, não, senhor... foi com a Tia Nastácia...

– O que aconteceu com Nastácia? Está doente? Caiu? Se machucou?

­– De saúde está igual. Coisas do velho reumatismo, né? Mas, ontem, eu entrei na cozinha e ela estava sentada num banquinho, chorando demais. E não  consegui consolar ela de jeito nenhum...

– Chorando? Chorando por que? Ela sempre foi muito bem tratada por todos no sítio...

– Bem tratada, mais ou menos, né, seu Bentinho...

– Como assim? Quem a está maltratando? Me fale que sou capaz de ir agora mesmo até o sítio para tirar satisfação... gosto muito daquela preta velha...

­– Sabe quem maltratou a Tia Nastácia, Seu Bentinho?

– Quem?

– O Senhor...

– Como assim? Eu jamais faria isso com ela... é uma pessoa querida...

– O senhor sabe que a Nastácia, igual eu, não sabe ler, né?

– Isso é verdade. O analfabetismo é o maior dos males desta terra... mas o que isso tem a ver com o choro da Nastácia?

– Pois é, ela soube pela Emília, que o senhor escreveu sobre ela no livro Caçadas de Pedrinho.  O senhor sabe que ela é curiosa e queria saber o que o senhor escreveu. Aí o Marques de Sabugosa leu que uma onça invadiu o sítio e que: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.”

– Ah. Bobagem. Isso foi lá em 1933... eu era ainda muito jovem quando escrevi esse livro ... faz tantos anos...

– Pois é... há tantos anos as crianças, que leem seu livro, aprendem que Tia Nastácia parece uma "macaca de carvão"... ninguém quer ser chamado nem de macaco, nem de carvão... não é verdade, Seu Bentinho?~

Lobato sorri amarelo e parece que vai se justificar, quando o velho Tio Barnabé lhe entrega uma folha de papel.

– O Pedrinho, que já está um homem formado, conheceu uma moça, amiga da Narizinho Arrebitado, muito bonita, pretinha que nem nós. Gostou dela, mas vendo como ela é tratada mal pelas pessoas, começou a ler de novo vários dos seus livros. Aí ele lhe escreveu isso aqui.

Entrega-lhe um bilhete pedindo: 

– O senhor pode ler em voz alta para eu saber o que está escrito?

Sem graça, o escritor tenta soltar um pigarro da garganta e lê: “No livro Peter Pan, Emilia diz: ‘Uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda’. Até a Vovó Benta, em História do mundo para as Crianças, diz que a ‘Tia Nastácia é uma pobre negra analfabeta. Tudo que era crendice, lembro bem, era coisa de preta velha’. No livro...”

Numa passada de olhos no bilhete, vê um trecho da carta a seu amigo Artur Neiva, de 1928:  "País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan, é país perdido para altos destinos […] Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva"

O escritor parou... não aguentou ler o resto. Nunca tinha pensado sobre isso. E descobriu o mal que fez à Tia Nastácia, que sempre preparou as delícias que ele mais gostava de comer, quando ele estava no sítio do Picapau Amarelo, e o tratava com o maior carinho... Tantos anos depois, Tio Barnabé veio lhe contar do mal que isso fez não só à velha cozinheira, mas a todas as pessoas que têm a mesma cor e origem dela... 

Lembrar-se, então, das próprias falas racistas da Sociedade Eugênica de São Paulo... e Lobato chorou... pediu perdão e prometeu a si próprio que nunca mais falará dessa maneira sobre as pessoas, só porque são diferentes dele... Foi assim que José Bento Renato Monteiro Lobato, Bentinho para os íntimos, descobriu a beleza e a importância da Diversidade... somos todos diferentes, mas temos de ser iguais, no coração, e no direto de sermos respeitados e felizes...