sexta-feira, 7 de abril de 2017

“O SEU CABELO NÃO NEGA...”

por Oswaldo Faustino 

Talvez mais importante do que “não negar” seria os cabelos revelarem, afirmarem e documentarem uma consciência 

e o orgulho da própria ascendência africana


Vale muito menos o que fazemos com os cabelos que cobrem nossas cabeças – ou mesmo com sua ausência – do que o que trazemos debaixo das raízes deles. Isso sim tem real importância. Porém, não dá para ignorar o fato de que nossa cabeleira pode transformar-se num manifesto político-racial, num discurso afirmativo não verbal. Caso não desejarmos faze-lo com nosso visual e, mesmo assim, quisermos afirmar-nos negros e negras, serão nosso comportamento e nossas palavras que terão a missão de manifestar-se, como é, por exemplo, o caso da família Obama e de milhares de outras pessoas, mundo afora.  

"Cabelo ruim": conceito desde a infância 
Criticar simplesmente os alisamentos, ao longo da história, sem refletir com profundidade sobre o que podem significar para as pessoas que a eles se submetem, também representa um desprezo à liberdade e ao direito à individualidade. Isso é fundamental. Como é a pessoa que seu espelho revela? Como é que ela deseja se ver revelada? O patrulhamento também pode ser questionado por exigir que a pessoa se liberte das correntes do que consideramos branqueamento e se acorrente a uma negritude, muitas vezes, meramente estética. 

Daí, a primeira pergunta a ser feita é: "Com que cabelo você se sente feliz?". Observe que programas-propagandas de venda de pranchas e chapinhas, exploram exatamente isso: quando uma moça de cabelos crespos é chamada, entra com expressão bastante infeliz; à primeira mecha alisada, veja o sorriso que ela exibe. O marketing afirma que não estão vendendo aparelhos, mas sim felicidade, ou o que aquelas moças pensam ser felicidade. 

O documentário com  Chris Rock está disponível na Netflix 
Em “Good Hair” (Cabelo Bom, 2009), Cris Rock apresenta de uma forma muito bem-humorada as questões relacionadas a o que significa ruim ou bom, quando se fala em cabelos. Aproveita para falar de racismo, de como corpo expressa uma consciência étnico-racial. Mas não deixa de mostrar mulheres negras de expressão, que usam cabelos alisados, mas que também contribuem muito para a autoestima das afro-americanas, como a apresentadora de TV Oprah Winfrey e a ex-primeira-dama Michelle Obama.

O documentário parte do questionamento de uma das filhas do comediante do porquê não tem “cabelo bom”. E ele demonstra o quanto tudo à volta de uma mulher negra – e do homem negro também, por que não? –, desde criança, contribui para esse questionamento. Chris Rock demonstra que essa pressão pode anular ações positivas, como a de viver afirmando às filhas que elas são lindas, como são, e não como outras pessoas digam que deveriam ser, despertando a necessidade de “domar os cabelos” com artifícios, como o alisamento e os relaxamentos.   

Maya Angelous: "É cabelo apenas"
Para a maioria, os cabelos têm a mesma função que as madeixas de Sansão – estão relacionados à própria energia vital –, porém, a premiada escritora, poeta e pensadora Maya Angelou declara no documentário: “Eu diria que o cabelo é a glória de uma mulher e que você compartilha dessa glória com sua família. Veem você fazendo tranças, veem você o lavando. Mas cabelo não é algo bom ou ruim. É cabelo, apenas”.

A própria Madame C. J, Walker, sobre quem escrevi a matéria inaugural desse blog, tinha sua linha de produtos que tornavam os cabelos lisos. Ela, porém, destacava muito mais a importância da cura do couro cabeludo, do fim da queda capilar, do fortalecimento e do crescimento dos cabelos e não do alisamento, como destaca sua tataraneta A'lelia Bundles, negando com veemência que a tataravó tenha inventado o pente de ferro para alisar. Já os descendentes do milionário inventor Garret August Morgan – que também criou o semáforo, entre outras invenções – não apresentam nenhum constrangimento em revelar que seu antepassado teria, acidentalmente, descoberto uma pasta, consertando máquinas de costura. Ele percebeu que o óleo usado para evitar que a máquina queimasse os tecidos, deixava os fios lisos e alongados. Após uma modificação aqui, outra ali, seus próprios cabelos estavam lisinhos. Assim surgiram seus cremes alisantes de grande sucesso.
Os dançarinos Nicholas Brothers, em "Tempestade de Ritmos"

Homens negros não estão blindados contra o desejo de “domar" as madeixas. Segundo o compositor, cantor e pesquisador de história e cultura negras, Nei Lopes, os “cabelos fritos” desembarcaram no Brasil, a bordo do filme musical Stormy Weather” (Tempestade de Ritmos) de 1943. Possivelmente no mesmo navio vieram containers lotados de pastas e cremes de toda sorte, pentes de ferro e outras invenções similares. Assim, os salões de barbeiro ganharam filas intermináveis de negros querendo entrar na moda dos cabelos lisos ou, pelo menos, ondulados. Vaselina e meias de seda femininas adquiriam uma nova função: manter os cabelos masculinos grudadinhos na cabela, lisos e brilhantes. 

O filme também pautou a indumentária da malandragem, com seus jaquetões de ombros largos e calças pregueadas com bocas extremamente estreitas. Diz a lenda que a polícia jogava uma laranja dentro das calças dos suspeitos de malandragem e, se descesse nas pernas da calça e não saísse, os levavam para a delegacia. Mas esse é um tema futuro para apresentarmos aqui.  

Angela Davis: cabelos afirmativos
A rebelião do movimento Black Power, nos anos 1960, não apenas libertou a consciência política com relação aos direitos civis dos afro-americanos e afros do mundo todo, mas também alimentou a cultura Black Soul que, artisticamente, nos trouxe uma sonoridade e um novo visual negro. Através dessa manifestação artísticas nosso povo, em especial a juventude, se livrou da ditadura da obrigatoriedade dos alisamentos.

O livro de Kiusam: fundamental
Certamente deve ter sido essa libertação que mais inspirou a doutora em Educação e escritora Kiusam de Oliveira a escrever seu livro O Mundo no Black Power de Tayó (ed. Peirópolis, 2013), com ilustrações de Taisa Borges, um grande sucesso editorial infantil, largamente consultado por adultos. Através de seus longos e arredondados cabelos a pequenina Tayó descobre a cultura de seu povo, a si própria e a seus grandes valores.     

O dreads de Bob: manifesto musical
Muito antes dos cabelos Black Power, na Jamaica, o movimento rastafari adotou o que viria a ser chamado dreadlocks. O que era uma interpretação bíblica sobre os cabelos fez-se uma marca, um manifesto identitário, que ganhou o mundo graças à internacionalização o Reggae. 
Luana, personagem criado
por Aroldo Macedo, autor
com Oswaldo Faustino, de
quatro livros. Também em
histórias em quadrinhos   

Enfim, não existe uma forma única de nos afirmar-nos negros e negras. O compromisso com a história e a cultura do nosso povo não depende de como nos vestimos ou com o que fazemos com nossos cabelos. Faça o que quiser com a parte externa de sua cabeça e cuide da melhor maneira possível da parte interna. Seus cabelos podem ser pintados da cor que você bem entender, descoloridos, raspados ou você pode usar as multi-criativas tranças de infindáveis variações. 

Eu, particularmente, me encanto com tranças e penso que cultivá-las, ainda na infância, tem alimentado a criação de uma identidade e a autoestima das crianças negras de ambos os sexos, o que fortalece o alicerce para uma excelente relação com a própria negritude e com o mundo à volta delas. 

Cultivar a felicidade, através do auto-reconhecimento e de uma identidade afro-descendente, vale realmente a pena. E tod@s devemos estar unid@s nessa jornada.




terça-feira, 4 de abril de 2017

O QUE VOCÊ SABE SOBRE A ÁFRICA?

por Oswaldo Faustino





Miséria, fome, guerras civis, epidemias, analfabetismo, governos corruptos... é só o que a mídia veicula, diariamente, para defender a tese de que os africanos necessitam da tutela de europeus e dos EUA


Durante um jogo de futebol entre uma seleção africana e a brasileira, há alguns anos, um famoso locutor esportivo de TV, elogiando a velocidade dos jogadores africanos justificou: “Também, não é para menos. Eles têm aquele espaço todo para correr”. Era como se as dimensões de um campo de futebol, na África, não obedecessem às normas internacionais para esse esporte e tivessem vários quilômetros quadrados, floresta adentro. Com certeza, para ele, devia ser quase impossível dissociar africanos de mata virgem e, possivelmente, o técnico seria o Tarzan.

Outro exemplo comportamental também relacionado ao futebol foi um grande humorista, já falecido, que afirmou em seu programa de TV, sem qualquer tipo de constrangimento: "Desde aquele gol marcado pelo uruguaio Ghiggia no goleiro Barbosa, em pleno Maracanã, arrancando de nossas mãos a taça da Copa do Mundo de 1950, não confio em nenhum goleiro negro".     


Dr. Ricardo Alexino Ferreira
“Discriminação é falta de conhecimento”... com esse slogan, o Dr. Ricardo Alexino Ferreira, professor de comunicação da ECA/USP, abre o programa Diversidade em Ciência que ele apresenta pela Rádio USP FM. A frase explica, em apenas cinco palavras, o que aconteceu na narração daquele confronto esportivo, mesmo que a intenção fosse a de elogio àqueles atletas. E até mesmo o pensamento de que negros são maus goleiros. Quantas outras “pérolas” como essas são expressadas diariamente, por conta do desconhecimento, que resultam em tradicionais preconceitos e discriminações, já fazem parte da própria cultura brasileira?
Quando, no século XIX, as potências europeias – Alemanha, Grã-Bretanha, França,  Itália, Dinamarca, Espanha, Império Otomano (atual Turquia), Portugal, Bélgica, Holanda, Suécia, Rússia e Império Austro- Húngaro (atuais Áustria e Hungria) –, juntamente com os Estados Unidos da América, decidiram oficializar a partilha entre si do Continente Africano, dividiram antigos impérios, reinos, civilizações e estados, criando os atuais 55 países, sem respeitar etnias, línguas, costumes, separando parentes e juntando num mesmo território povos tradicionalmente inimigos. Esse partilhamento foi realizado durante a Conferência de Berlim, organizada pelo chanceler alemão Otto von Bismarck e realizada entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Entre as aberrações dessa tal Conferência, estava o Congo Belga, atual República Democrática do Congo, uma área com extensão de mais de 2,3 milhões de km2, que se tornou uma possessão pessoal do rei belga Leopoldo II.   
Conferência de Berlim -- 1884-1885 -- Europeus partilhando a África
Algumas das potências já exploravam regiões da África, há séculos, como era o caso de Portugal, cujas caravelas vasculhavam os mares desde meados do século XIV. Os povos africanos eram descritos pelos invasores do Continente como seres destituídos de civilização, de cultura, de escrita, da capacidade de autogovernar-se, além de dominados pelo paganismo. 

Os habitantes da região de Angola, por exemplo, eram denominados pelos colonizadores de "índios", o que desmistifica o história do porquê foi dado esse mesmo nome aos habitantes originais das terras que viriam a chamar-se Brasil: os navegantes pensavam ter chegado à Índias. Ou será que a cada viagem cometiam o mesmo engano? Por sinal, os "índios" de cá também eram chamados, curiosamente, de "negros da terra". Índios, tribos, negros, incapazes, indolentes, pagãos... meras desqualificações. 
O que a maioria dos ocidentais desconhece, até hoje, é que desde o século XII, três séculos antes da chegada de europeus ao Continente Africano, no Império do Mali – que compreendia os atuais países Mali, Senegal, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau e Burkina Faso –, já existiam três universidades, nas cidades de Gao, Djené e Tombucto, as duas últimas declaradas "patrimônio mundial". Em Tombucto, cidade com cerca de 100 mil habitantes, se encontrava a famosa Universidade Corânica de Sankoré, onde se realizavam estudos árabes, em especial islâmicos. Vinte cinco mil eram alunos dessa universidade: 1/4 da população local. Só um preconceito sem limites poderia considerar esses povos incivilizados, apenas por serem pretos.


Universidade de Sankoré, em Tombucto, Império do Mali, desde o séc. XII 

Mas, além do Império do Mali, também chamado de Mandinka, não podemos esquecer outros grandiosos como o de Gana, ou Wagadu, também chamado de Costa do Ouro; o Aksum, ou Axum, que abrangia os atuais países Etiópia e Eritréia; o do Congo; o Songhai; o do Zimbábue; o Oyo Yuribá; o Monomotapa; o reino do Benin; o Estado Zulu; e principalmente o Egito, com suas riquezas e tecnologias reconhecidas internacionalmente e que tinha uma medicina tão avançada que se realizavam até cirurgias de extração de tumor cerebral e em cuja cultura e filosofia beberam os gregos.
Há uma infinidade de revelações sobre o poderio político, as riquezas minerais, econômicas, filosóficas, técnicas, tecnológicas, científicas e medicinais aflorados no Continente Africano, muito antes de qualquer contato com “civilizadores” europeus. Pensar seus habitantes organizados em tribos incultas só pode ser concebido por motivações racistas.
Para se ter uma ideia da riqueza das civilizações lá existentes, a coleção História Geral da África, que foi produzida pela UNESCO, se compõe de oito volumes, com uma média de mais de mil páginas cada. Trata-se de uma obra, que apresenta a História pelo olhar de cientistas e pesquisadores em sua maioria africanos e cuja produção iniciou-se em 1964, com a participação de mais de 350 intelectuais e foi concluída cerca de 30 anos depois, com edições em inglês, francês e árabe.
Uma obra caríssima, que só milionários poderiam adquirir, mas seus volumes podem ser baixados gratuitamente pela internet, em PDF. Sua tradução para o português resultou de um convênio entre o escritório brasileiro da UNESCO, a antiga Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC), extinta pelo governo golpista atual, e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Um novo trabalho científico sintetizou essa obra gigantesca em dois volumes.
Eu pretendo voltar ainda muitas vezes a escrever sobre essa temática. Porém, quero estimular meus irmão e minhas irmãs afro-brasileiras a elevarem sua autoestima:

Ergam as cabeças e não admitam que lhes lancem à face a mentira de que pessoas de outras etnias podem nos discriminar, por sermos descendentes de escravos. Enganam-se! Descendemos, na verdade, de grandes civilizações africanas, de reinos prósperos, ricos material e culturalmente, de mulheres e homens escravizados pela avareza, pela prepotência, pela desumanidade e pelo racismo de governantes e empresários europeus – e de alguns africanos que com eles fizeram acordos espúrios –. As graves consequências estão aí até os dias atuais. Mas jamais desistiremos de lutar por reparações históricas e para revertermos o destino que o racismo inventou para o nosso povo.






"Somos negras panteras e exigimos nosso direito de contar nossa história. Cansamos de ouvir o caçador glorificando
a si próprio!" 

(O.F.)  

domingo, 2 de abril de 2017

JAMAIS NECESSITAMOS TANTO DESSA LUZ

De 17 de dezembro de 2013 a 19 de janeiro de 2014, ocupou um espaço da Caixa Cultural, em São Paulo, a exposição MEMORIAL LUIZ GAMA, com imagens de personalidades negras, fotografadas por grandes profissionais, recriando o universo do advogado, jornalista, poeta, abolicionista e republicano Luiz Gonzaga Pinto da Gama. O curador do projeto, Max Muratório de Macedo, me convidou a escrever o catálogo que foi aberto com o texto abaixo:



... só porque fotografia é Luz


Que Luz é essa que, noite após noite, atravessa os portões de ferro do Cemitério da Consolação e desliza pelas avenidas, ruas, travessas, becos e vielas?
Luz que busca reconhecer São Paulo, mas São Paulo já não há. Não aquela que tão profundamente conheceu e que também não a reconhece. Duas estranhas, frente a frente.
Também, pudera, a cidade vestiu de asfalto todas as pedras dos calçamentos, nos quais se imprimiram as marcas profundas de suas pegadas de felino, a urrar contra a escravidão e o império...
São Paulo de quatrocentões escravocratas, cidade oligarca despudorada de ostentar seu baronato cafeeiro. São Paulo de orgulho bandeirante, voraz expansionista, caçadora de esmeraldas e de indígenas, destruidora de limites territoriais e de quilombos.
São Paulo de ontem? Não, de hoje, de sempre.
Uma das fotografias da exposição Memorial Luiz Gama
.
Uma Luz insubmissa de berço, parida por mãe nagô revoltosa, insiste em brilhar e em vagar noite adentro. Se, em memória, a apagaram, sua eterna insubmissão insiste em reacender-se mais e mais.
Desliza até o Brás e passa em frente à porta da igreja que assistiu à disputa pelas alças de seu caixão. Ri, irônica, ao lembrar-se de poderosos, posando para lambe-lambes, tendo suas mãos arrancadas a força das alças douradas, por mãos negras e livres, livres e gratas, gratas e cerradas como quem brada: “Nunca mais!”
Luz nostálgica, divagando em lembranças de lampiões a gás e de bondes puxados a burros. E enojando-se ante a sombra de senzalas, grilhões, corpos negros marcados a chibatadas e ferro em brasa.

Desliza morro acima, em direção às Arcadas. O riso, agora, é quase gargalha, ao avistar seu retrato iluminado numa parede da sala, onde lhe foi negado o diploma de Direito por aqueles que se renderam aos conhecimentos desse rábula, devorador das obras encadernadas em fino couro da rica biblioteca, frequentador na condição de ouvinte. Ouvinte? Triste ilusão daqueles que mal conseguem ver além da cor da pele. Tardiamente irão descobrir que esse “bode”, com defeito de cor, tem ouvidos mocos a suas teorias racistas e uma boca imensa, sempre pronta a tonitruar em defesa dos injustiçados, em cujas cabeças jamais passa a mão. Já os vitimou, em vida, com humilhações em demasia. Não precisam de que também ela se some aos falsos filantropos.
Rábula? Dá de ombros. O que vale é a vitória nos tribunais. Libertar um após o outro, uma após a outra... multidão. E qualificar de “legítima defesa” – diante da prepotência dos que se julgam superiores, intocáveis –, a ação homicida do escravizado contra seu escravizador.

Luz, que “...libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro...”, testemunha o amigo admirador.

Luz de Luís (raio) Gama, cuja radiação é capaz de penetrar tão profundamente na matéria que a transforma em sua própria essência. Libertária, a libertar não só africanos raptados, acorrentados e arrastados para o lado de cá da apavorante Kalunga Grande, sobreviventes do banzo, dos maus-tratos e da reificação. Mas também corações e mentes, transformando jovens herdeiros das fortunas maculadas pelo sangue negro, em malungos combatentes contra esse crime de lesa-humanidade.

Luz de riso incontido, diante de seu busto altaneiro, no Largo do Arouche, olhando firme, de frente, para a rua que homenageia seu inimigo visceral, um juiz municipal suplente, que insiste em indeferir suas petições. Não. Tal atitude obsessiva não merece qualificação melhor que “estúpido emperramento”... mesmo que lhe custe a demissão, na repartição.

E continua a deslizar por aqui por acolá, essa Luz baiana, que um dia ainda infante, foi vendida pelo pai e falido, viciado em jogo, herdeiro perdulário de fortuna europeia. Luz nascida livre, olhar assustado de criança que, por conveniência, a mentira transformou em escrava. Dividida entre o temor do futuro incerto, a bordo do patacho Saraiva, e a esperança de encontrar a mãe, assim como ela, acorrentada e levada para o Rio de Janeiro.
A  Luz de Luiz, meu livro mais recente,
com prefácio da Dra. Lígia Ferreira e 
apresentação do rapper Rappi'n Hood, 
traz num capítulo parte desse texto. 
Luz a quem se negaram a comprar, não por questão humanitária, mas por temor a seu sangue malê. Luz adolescente que um dia apanhou a pena e nunca mais a largou. Luz combatente, revoltosa, transformadora, contemporânea, seja em que tempo for.

Luz consciência, vibração, intensidade, tão amada por uma São Paulo, que a esqueceu. Luz Getulina, Luz Diabo Coxo, Luz Cabrião, Luz Coaraci, Luz Polichinelo, Luz Bodarrada, Luz Radical, Luz Maçônica... simplesmente Luz

Essa é a Luz que artistas engajados, como Walter Firmo, Eustáquio Neves, Denise Camargo e Eduardo Firmo imprimiram na camada fotossensível do papel. Luz na qual personalidades, como Luiz Melodia, Zeze Motta, Eduardo Silva, João Acaiabe, Gesio Amadeu, Sidney Santiago, Max Mu, Oswaldo Faustino mergulharam para dar-lhe voz e corporeidade.
.
Bem-vindos à Luz!

Alerta! Agarre, com força essa Luz, antes que São Paulo amanheça e volte a se deixar anestesiar pela amnésia.