sábado, 3 de novembro de 2018


ESCURECENDO O OSCAR...

Quem foi a primeira atriz afro-americana a receber a cobiçada estatueta do maior prêmio do cinema dos EUA? Por qual filme? Em que ano isto ocorreu?

por Oswaldo Faustino

Halle Berry
Octávia Spencer
Jennifer Hudson
 

Woopi Goldberg
Viola Davis
Lupita Nyong'o

Não. Não foi Halle Berry, em 2002, por sua brilhante interpretação da protagonista de “A Última Ceia”, de Marc Forster, como poderíamos imaginar. Nem mesmo outras estrelas negras que estamos acostumados ver nas telas de cinema e na TV. Na verdade, em 1940, Hattie McDaniel conquistou o Oscar de “melhor atriz coadjuvante”, ao interpretar Mammy, a rechonchuda empregada da jovem sulista Scarlett O'Hara (Vivien Leigh), paixãozinha de Rhett Butler (Clark Gable), no clássico “...E o Vento Levou” (Gone with the wind), de 1939. Esse filme, dirigido por Victor Fleming, baseado no romance de Margaret Mitchell, levou 10 das 12 estatuetas para as quais foi indicado, na 12ª versão da premiação.

Em 26 de outubro passado, completaram-se 66 anos da morte de Hattie McDaniel, que permaneceu esquecida, por décadas, a não ser quando se desejava criticar artistas afro-americanos que se submetiam a papeis considerados inferiores ou jocosos, como foi feito através do filme “A hora do show” (Bamboozled), de Spike Lee, em 2000. 

Porém, ignorar McDaniel é uma injustiça que deve ser corrigida, em breve, com uma cinebiografia, que encontra-se em produção e contará sua origem humilde e religiosa, sua trajetória, seu amor pela black music e pelo cinema, seus embates com membros do Civil Rights Movement e seu maior feito: tornar-se a primeira mulher negra a conquistar um Oscar. Os produtores dessa cinebiografia ainda não revelaram qual será o elenco, a direção, nem mesmo a data prevista para o lançamento.
Nascida em Wichita, no Kansas, em 1895, Hattie era a caçula dos 13 filhos do pastor batista Henry McDaniel com a cantora gospel Susan Holbert. Seu pai nasceu sob o regime da escravidão – que nos EUA teve fim em 1863, com a Proclamação de Emancipação, por Abraham Lincoln, durante a Guerra de Secessão, a guerra civil norte-americana –.  Ainda menina, ela formou um quarteto vocal, com o pai e os irmãos Otis e Sam. Foi uma das primeiras garotas negras a cantar no rádio, no EUA, na primeira década do século XX. Jamais abandonou a carreira radiofônica.
Quando o quarteto se desfez, em decorrência da morte de Otis, Hattie seguiu carreira solo e, além de realizar várias gravações, na maioria de composições próprias, participou de diversos espetáculos musicais, com apoio logístico da Theatrical Owners Booking Association, uma associação de negros proprietários de teatros, que faliu com a quebra da Bolsa de NY, em 1929.

SUCESSÃO DE SUPERAÇÕES – A vida de Hattie foi cercada de
atos de superação e de pequenas conquistas. Fosse com relação a si própria, ou provocando mudança de atitude em seu redor. Durante a Grande Depressão, por toda a década de 30 e parte da seguinte, legiões de desempregados vagavam à cata de qualquer tipo de atividade que lhes garantisse alguns trocados. O único trabalho que Hattie McDaniel conseguiu, nesse período, foi o de atendente, no banheiro feminino do Club Madrid, em Milwaukee, uma casa noturna exclusivamente para brancos. O proprietário a conhecia e gostava de ouvi-la cantar. Mas temia uma má reação dos frequentadores. Um dia, porém, arriscou-se a convida-la a subir ao palco e ela se tornou uma das principais atrações daquela boate. Mesmo com dificuldades financeiras, participou das ações para angariar fundos para ajudar os soldados norte-americanos, na Segunda Guerra Mundial.



Revezava a carreira de atriz de cinema com a de cantora e demais atividades no rádio. Como "não" era uma palavra que jamais usava ao receber convites para atuar, teve aparição em mais de 300 filmes, porém, seu nome só consta na ficha técnica de cerca de 80 deles, ao longo de uma careira que durou de 1932 a 1949. Além de Mammy em “...E o Vento Levou”, outro personagem que a destacou foi Tia Dilsey, na comédia Judge Priest” (O Juiz Priest), dirigida por John Ford, em 1934, no qual pode também exibir seu talento de cantora.

Aos militantes das lutas pelos Direitos Civis, que a criticavam por aceitar a humilhação de só interpretar papéis servis, como o de empregada doméstica, respondia: "Ganho 700 dólares por semana, sendo uma empregada, nas telas. Ganharia sete, sendo uma de verdade." Hattie sabia bem do que estava falando, pois, por muito tempo, quando não estava cantando ou filmando, sobrevivia trabalhando de faxineira ou cozinheira, para completar o orçamento. O Oscar melhorou muito seus ganhos, mas não os papeis, que continuaram sendo os de serviçal e de escravizada.
Premiá-la foi uma verdadeira ousadia dos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Seguiu-se uma polêmica, pois, apesar da indicação, Hattie não recebeu convite para participar da cerimônia de premiação. O motivo? Era proibido o ingresso de negros e negras no Dorothy Chadler Pavilion, em Los Angeles, onde o evento se realizou, a não ser na cozinha, no estacionamento ou servindo os convidados. Ao tomar conhecimento desse fato, Clark Gable, indicado ao prêmio de “melhor ator”, anunciou que também não compareceria. Foi necessária uma autorização especial para permitirem a entrada de Hattie McDaniel no evento. Gable, então, concedeu entrevistas afirmando que só iria à festa como convidado de sua querida amiga McDaniel. Curiosamente, até ser anunciada vencedora, ela permaneceu na última mesa do salão, longe dos demais indicados pelo mesmo filme, que estavam bem à frente. 
Num ato simbólico, a atriz doou seu Oscar à Howard University, a primeira universidade afro-americana, fundada na capital do país, Washington D.C., em 1867, quatro anos após a abolição da escravatura. Durante os conflitos raciais dos anos 60, a estatueta desapareceu e nunca mais foi encontrada.


Entre as homenagens, após sua morte, há duas estrelas na Calçada da Fama: uma na Hollywood Boulevard, por sua atuação no rádio; e outra na Vine Street, por seu intenso trabalho em cinema. Em 2006, o Serviço Postal dos EUA a destacou na  29ª edição das Black Heritage Series, com a publicação de um selo postal, no valor de 39 centavos.

EM HOLLYWOOD, NEM TUDO SÃO FLORES – Quatro casamentos, uma viuvez, três divórcios. Ao seu último marido, Larry Williams, com quem não chegou a viver um ano, deixou em testamento apenas um dólar. Passou os últimos anos de sua vida em depressão e foi acometida de um câncer. Apesar de ter participado de tantos filmes que enriqueceram muitos artistas de cinema, produtores e diretores, a herança que Hattie deixou à família não chegava a 10 mil dólares.



Assim como Halle Berry, 62 anos depois, Hattie McDaniel dedicou o prêmio da Academia a seu povo: “Este é um dos momentos mais felizes da minha vida. Espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria do cinema” afirmou no discurso, de 36 segundos, que lhe permitiram fazer. O de Berry – que reflete seu tempo e as conquistas dos afro-americanos, naquelas seis décadas – durou mais de 4 minutos.
Quando McDaniel  morreu, aos 57 anos, em 1952, o proprietário do Cemitério de Hollywood, reservado aos artistas de cinema e celebridades, não permitiu que seu corpo fosse sepultado ali, por ela ser negra. Seu funeral aconteceu no Cemitério Angelus Rosedale, também em Los Angeles. Em 1999, o empresário Tyler Cassity comprou o cemitério das celebridades e mudou seu nome para Hollywood Forever Cemetery. Então, procurou os familiares de Hattie McDaniel sugerindo que seus restos mortais fossem trasladados para lá, mas eles recusaram, alegando que isso “perturbaria seu repouso eterno”. Cassity, então, mandou instalar um pequeno monumento em memória dela, em frente ao lago, na área central daquele campo sagrado.