sábado, 22 de abril de 2017

O ESPELHO MÁGICO

                                                        por Oswaldo Faustino


(Este conto integra a palestra intitulada "REFLEXÕES DIANTE DE UM ESPELHO SEM REFLEXO") 


Quem não se vê não se reconhece. 
Quem não se reconhece não se identifica. 
Quem não se identifica não se ama
tem baixa autoestima e se desinteressa 
tanto por si próprio quanto pelo outro. 
E ainda querem impor-lhe 
conceitos de cidadania...

Não. Ele não estava lá. Olhava que olhava, procurava que procurava, mas ele não conseguia ver sua imagem refletida na superfície daquele espelho. A sala estava lá, a mesa, a janela ao fundo, tudo, menos ele...
Caramba! Será que ele não existia? Existia, sim. Mas, pasme, aquele era um menino invisível.
Você sabe o que é uma criança descobrir-se invisível? Não. A gente pode imaginar, pode ter uma vaga idéia. Mas saber, saber mesmo, só sabe quem é invisível. A dor da invisibilidade só sente quem é acometido por ela. E aquele menino era invisível.
Claro que ele não era invisível para todos. A mãe conseguia vê-lo, amá-lo, compreendê-lo, e era para ela que ele sempre corria: “Mãe, eu quero me ver. Eu quero ser visto.” E ela, sempre generosa, dizia: “Calma, meu filho! Talvez isso seja porque você ainda é... ninguém. Mas um dia você será alguém. Aí, o mundo inteiro vai poder vê-lo, reconhecê-lo, amá-lo como eu”.
E o menino ficou matutando sobre aquelas palavras: “Um dia você será alguém. Aí, o mundo inteiro vai poder vê-lo, reconhecê-lo, amá-lo...”.
E o que fazer para ser alguém? A própria mãe, que acreditava ter todas as respostas, disse-lhe o que ela imaginava ser a solução: “Para ser alguém você precisa estudar”.
Mãe, então me põe na escola para eu ser alguém! Afinal, quem é ninguém jamais poderá se ver refletido no espelho”.
E lá foi o menino para o seu primeiro dia de aula e... Não. Ele não se via refletido no espelho escolar. Ele não estava lá também. Em nenhum espelho. Não estava no livro de Matemática. O livro de História não contava a sua história. O de língua pátria não falava a sua língua.
Nem a professora o enxergava. Ela beijava algumas crianças, acariciava, dava atenção, aplaudia suas respostas, caprichava na nota. Mas ele, não. Não estava lá.
O tempo passou. E, no mesmo dia em que se tornou adolescente, como num passe de mágica, ele deixou de ser invisível e se tornou... suspeito. Suspeito crônico. Suspeito de todos os males que acometiam a comunidade em que vivia. De todos os males da sociedade.  
E, no Brasil, se você é suspeito, já é culpado. Se não culpado do que suspeitam, culpado por terem suspeitado de você. E, finalmente, ele se tornou visível, na primeira página do noticiário policial.

Mas essa história não termina aí. Seria triste demais...
Aquele menino tinha uma irmãzinha caçula, tão invisível quanto ele. E, como ainda era criança, ela acreditava na existência de um velhinho que trazia presentes no dia de Natal. As outras crianças o chamavam de Papai Noel. Como a mãe, para ela, era Iyá e o pai, Baba, resolveu chamar o velhinho de Baba Noel. E, como as demais crianças, ela também escreveu uma cartinha para ele.
E Baba Noel começou a ler as cartinhas recebidas. Uma pedia boneca, outro queria bola, outras, bicicleta, celular computador, vídeo game... Foi aí que ele abriu aquela carta com um pedido estranho: “Para que eu possa me ver, me reconhecer, me identificar, eu quero um espelho mágico”.
Só então Noel se deu conta de que não era a primeira carta que ele recebia com esse pedido. Havia outras, que ficaram esquecidas no fundo do baú de correspondências. Eram dezenas, centenas, milhares. Caramba! Como arranjar espelhos para atender a tantos pedidos?
Pela primeira vez ele se sentiu incapaz. Decepcionar criança é o que jamais gostaria de fazer. Por isso chorou. Chorou muito, intensamente. Suas lágrimas escorreram para fora da casa e se misturaram às lágrimas de todas as crianças invisíveis de todo o mundo, por todos os tempos, formando uma grande lagoa. O frio polar a congelou e o frio de muitos corações humanos se encarregou de cristalizá-la.
Foi aí que passou por ali, em trenós, uma caravana de peregrinos. Eles avistaram o imenso cristal e, com muito esforço, o arrancaram do solo e o levaram para sua aldeia distante. Seus magos artesãos lapidaram aquele cristal, durante anos, e o transformaram num gigantesco espelho mágico que trazia em seu reflexo todas as nossas personalidades, nossas culturas, nossas tradições, nossas realizações. Lá estão nossos ancestrais, nossa forma de ser e de pensar o mundo. Esse, sim, é o nosso espelho.
No dia em que o espelho mágico ficou pronto, todas as crianças, antes invisíveis, puderam ver seu reflexo e refletir sobre elas próprias, sua gente, sua cultura, sua história. Aí, descobriram que são belas, belíssimas, ricas, poderosas, não ficam a dever nada a todas as demais crianças do planeta.
Olha só a maravilha de sorriso que esse espelho revelou! E não é para menos, sobre a cabeça de cada uma delas há uma coroa, uma mais linda que a outra. Sabe o porquê? São verdadeiros reis e rainhas, legítimos herdeiros de civilizações gloriosas. E o melhor ainda é que as crianças, que antes eram as únicas visíveis, ao se olharem também no mesmo espelho, conseguem ver a si e às demais igualmente lindas. E passam a amá-las e a conviver com elas em total harmonia.


Àquelas pessoas que receberam a missão de educá-las cabe apenas o privilégio de polir essas cabeças coroadas, fazendo com que brilhem cada vez mais, mais e mais. Deixem todo o restante por conta delas!

quinta-feira, 20 de abril de 2017

O GIGANTESCO RUGIDO DA LEOA

por Oswaldo Faustino

A história oficial não tem melindres em heroificar figuras cruéis e sanguinárias, com tanto que sejam homens e brancos. Raros heróis são negros.
Mulheres negras, então...


O que sabemos a respeito de Dandara, de Acotirene, de Aqualtune e de tantas outras mulheres que resistiram, bravamente, ao longo de cerca de um século, no Quilombo de Palmares? Quem foram Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Maria Soldado e outras heroínas que enfrentaram, ombro a ombro com seus companheiros e companheiras, a opressão, a exploração, os desmandos dos poderosos e cujos nomes e protagonismo ou não ficaram registrados no mármore da história ou são sub-valorizados? No máximo, são mencionadas como coadjuvantes. A historiografia prefere tratá-las, muitas vezes, como lendas improváveis, fruto da imaginação e da oralidade popular.


A Etiópia é um país que perdeu suas saídas para o mar
Hoje, vamos viajar a um país chamado Etiópia, que fica na região oriental do Continente Africano. Exceto os falashas, que são judeus, descentes de Menelik I, o filho do Rei Salomão com Makeda, a Rainha de Sabá, a maior parte da população é cristã, da linha ortodoxa. O Cristianismo é a religião oficial desde 325 D.C., só antecedida pela Armênia, no leste europeu, cristã a partir de 301 D.C.. Em Roma, a sede do Catolicismo, essa religião só foi oficializada em 380 D.C.. Pensar o Cristianismo como nascido na Europa é um grande engano e a desculpa para invadir a África, alegando ir civiliza-la e cristianizá-la, não passa de uma enorme mentira para disfarçar os objetivos reais: dominação, exploração de riquezas e escravização.    
Mas, voltando ao tema deste artigo – nossas heroínas –, mais ou menos no centro da Etiópia, encontraremos a capital, Adis Abeba. Lá chegando, perguntaremos a uma criança, em seus primeiros anos escolares: “Você conhece Taitu Bitul?”. E veremos como os olhos dela brilharão de orgulho. O curioso é que, se estivéssemos em Kingston, capital da Jamaica, no mar do Caribe, América Central, a reação da criança, provavelmente, seria muito parecida. Não será coincidência. Por conta do Ras Tafari, boa parte dos jamaicanos têm a Etiópia como referência. Mas, e você? Já ouviu esse nome: Taitu? 
Aí vêm os italianos!
Menelik II se torna negus e quer negociar 
Ao receber a Etiópia de presente, na Conferência de Berlim (1884/1885), que retalhou o Continente Africano e o repartiu entre as potências europeias, a Itália não fazia ideia da montanha rochosa coberta de espinheiros, precipícios e armadilhas que iria encontrar. Exibindo força e poderio bélico, o exército italiano teve de enfrentar a bravura da resistência etíope e só obteve poucas chances de uma aparente vitória. Numa batalha em 1889, o negus [1] Johannes IV foi assassinado. Para sucede-lo, os anciões do Conselho escolheram, entre vários rases [2], Sahle Marim, ras do Choa, que foi entronizado, em novembro do mesmo ano, com o nome de Menelik II. Ele não havia participado dos combates e se manifestou disposto a um convívio pacífico com os italianos.
Por conta disso, os invasores trocaram a violência pela diplomacia. Iniciaram-se negociações e com elas os engôdos, como o de textos dos acordos entre as duas partes, na versão em italiano dizerem coisas diferentes do que estava escrito em amárico [3], língua local. Desta forma, sem que Menelik soubesse, tudo o que seu país negociasse com outros, teria de passar pela intermediação da Itália e uma grande área da Etiópia foi transformada em colônia italiana, separando o restante do país do Golfo de Aden, que liga o Mar Vermelho ao Oceano Índico. Essa colônia recebeu nome de Eritreia.

Cara de anjo, olhos de águia
A imperatriz "Luz da Etiópia"
Foi quando surgiu no cenário, a bela Taitu Bitul que, apesar da pouca idade, já passara por quatro casamentos. Trazia no sangue um DNA semelhante ao de Makeda, a famosa Rainha de Sabá, da Abissínia – antigo nome daquela região –. O rei hebreu Salomão se apaixonou loucamente por Makeda e escreveu o livro bíblico "Cântico dos Cânticos", em homenagem a ela, durante a viagem dessa rainha a Jerusalém, quase 30 séculos antes. Menelik II também vinha de alguns casamentos frustrados, como Taitu. Ao conhece-la, reagiu com paixão semelhante à que ficou documentada na Bíblia, por Salomão. Com a união do casal, a jovem se tornou imperatriz, recebendo o título de "Luz da Etiópia". Se encarregou da construção de Adis Abeba  "Nova Flor", em amárico no local escolhido por ela, cidade que se tornou a capital. 
Taitu: capa de jornal em Paris
Demostrando ao pacífico Menelik II o quanto o estavam enganando, Taitu o convenceu de que, se continuassem as negociações, em pouco tempo todo o seu país se juntaria aos demais africanos que se tornaram colônias da Europa, campos de exploração e de escravização. Ela não tinha medo de ser impopular e era quem tomava as decisões mais duras. O marido tentava sempre “colocar panos quentes”, fosse qual fosse o conflito.
Porém, orientado por ela, Menelik decide ir à guerra e juntamente com a maioria dos rases, forma um exército com 100 mil combatentes, dentre os quais 25 mil mulheres. A própria Taitu segue para o front comandando uma legião de 5 mil homens e mulheres, responsável por ações estratégicas, cercando os inimigos em número muito inferior – 9 mil italianos e 11 mil eritreus –. A Itália concentrava toda a sua esperança em seu poderia bélico e na longa e vitoriosa experiência de comando do General Orestes Baratieri.

No front, Menelik, Taitu e alguns rases no comando do exército etíope
Metade do exército etíope se valia de rifles, metralhadoras e canhões, fornecidos pela Russia, pela França e outros países que apoiavam sua resistência, apesar de eles próprios terem colônias no Continente. O restante fazia uso de armas tradicionais, como lanças, escudos, espadas, arcos e flechas. Acima de tudo, do fortíssimo espírito de luta. O comando geral era dividido entre o próprio negus Menelik II com a imperatriz Taitu. Ambos não viviam aquartelados. Mantinham-se no front, onde eram auxiliados pelos rases de cada região, que comandavam seus  exércitos regionais.
O General Orestes Baratieri

O marketing X a realidade

A Itália tinha certeza de que era impossível à Etiópia resistir, por muito tempo, a seus planos imperialistas. Essa ideia era amparada exatamente no racismo, uma vez que, desde a Antiguidade, na Europa, "etíope" era sinônimo de "pessoa preta". Para a imprensa internacional da época, o comando italiano e seu governo faziam questão de demonstrar menosprezo pelo inimigo: "Menelik é fraco, inseguro e está nas mãos de sua esposa. Todo mundo está cansado e sua renúncia é esperada. [...] A opinião pública está pronta para a queda de Menelik. Ao primeiro golpe esse império desmorona", declarou o comandante Baratieri juntamente com primeiro-ministro da Itália, Francesco Grispi. 
Batalha de Adwa: a definitiva vitória dos etíopes humilhou a Itália  
Foi na planície de Adwa, que Orestes Baratieri encontrou seu Waterloo. Os mapas tinham vários erros, as comunicações falharam e as ordens do general foram mal-entendidas. Resultado: 7 mil italianos e eritreus mortos, 1,5 mil feridos e 3 mil prisioneiros. Entre os etíopes, o número de mortos e feridos também foi grande – 6 mil e 8 mil, respectivamente –, mas como esse exército tinha quase o sêxtuplo do inimigo, pode-se dizer que a baixa não os abalou. Em primeiro de março de 1896 os italianos foram humilhantemente expulsos e Francesco Crispi, renunciou.

Foi primeira vitória militar de uma nação africana sobre o colonizador europeu e a Etiópia se manteve livre e independente. Menelik e Taitu demoraram quase dois meses para conseguir realizar seu retorno triunfal a Adis Abeba, pois por onde passavam eram recebidos com festas que duravam dias.


Depois do primeiro avc de Menelik, Taitu assume o poder 
Em 1904, Menelik II completou 60 anos e sofreu o primeiro acidente vascular cerebral (avc), de uma série que se seguiu. Esse foi o mais fraco, mas ele perdeu a fala. O demais foram cada vez mais graves e, além de deixarem muitas sequelas, o levaram ao total desequilíbrio mental. A imperatriz Taitu Bitul assumiu o poder e governou o país por seis anos, para desencantos de vários rases. Eles organizaram complôs para depô-la, o que conseguiram em 1910. Menelik faleceu em dezembro de 1913 e a imperatriz, cinco anos depois. Ela entrou para a história como a mulher mais poderosa e admirada que a Etiópia conheceu, depois apenas da insuperável Rainha de Sabá.

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[1] Negus era o título maior de poder na Etiópia, equivalente a "rei dos reis";

[2] Ras - cujo plural é rases -, título de nobreza amárico, dados aos reis regionais (feudais) que se submetiam ao poder do Negus;
   
[3] Amárico, língua de origem semita, falada em toda a Etiópia. Não confundir com aramaico, outra língua semita falada na região do Oriente Médio. 

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Em tempo: Eu escolhi  TAITU para denominar uma personagem adolescente de meu próximo livro, a ser lançado, Ah! Se eu pudesse voar...”.  Nascida na Eritréia, país desmembrado da Etiópia, a garota orgulha-se demais por ter esse nome.  Como canta Nei Lopes, sobre seu ancestral, em sua composição Maracatu de Meu Avô, a jovem também quer cantar: "Taitu não foi qualquer uma..."