por Oswaldo Faustino
(Este conto integra a palestra intitulada "REFLEXÕES DIANTE DE UM ESPELHO SEM REFLEXO")
Quem não se vê não se reconhece.
Quem não se reconhece não se identifica.
Quem não se identifica não se ama
tem baixa autoestima e se desinteressa
tanto por si próprio quanto pelo outro.
E ainda querem impor-lhe
conceitos de cidadania...
Não. Ele não estava lá.
Olhava que olhava, procurava que procurava, mas ele não conseguia ver sua
imagem refletida na superfície daquele espelho. A sala estava lá, a mesa, a
janela ao fundo, tudo, menos ele...
Caramba! Será que ele não
existia? Existia, sim. Mas, pasme, aquele era um menino invisível.
Você sabe o que é uma
criança descobrir-se invisível? Não. A gente pode imaginar, pode ter uma vaga
idéia. Mas saber, saber mesmo, só sabe quem é invisível. A dor da
invisibilidade só sente quem é acometido por ela. E aquele menino era
invisível.
Claro que ele não era
invisível para todos. A mãe conseguia vê-lo, amá-lo, compreendê-lo, e era para
ela que ele sempre corria: “Mãe, eu quero me ver. Eu quero ser visto.” E ela,
sempre generosa, dizia: “Calma, meu filho! Talvez isso seja porque você ainda é...
ninguém. Mas um dia você será alguém. Aí, o mundo inteiro vai poder vê-lo, reconhecê-lo,
amá-lo como eu”.
E o menino ficou matutando
sobre aquelas palavras: “Um dia você será alguém. Aí, o mundo inteiro vai poder
vê-lo, reconhecê-lo, amá-lo...”.
E o que fazer para ser
alguém? A própria mãe, que acreditava ter todas as respostas, disse-lhe o que
ela imaginava ser a solução: “Para ser alguém você precisa estudar”.
“Mãe, então me põe na escola
para eu ser alguém! Afinal, quem é ninguém jamais poderá se ver refletido no
espelho”.
E lá foi o menino para o seu
primeiro dia de aula e... Não. Ele não se via refletido no espelho escolar. Ele
não estava lá também. Em nenhum espelho. Não estava no livro de Matemática. O livro de História não contava a sua história. O de língua pátria não falava a
sua língua.
Nem a professora o
enxergava. Ela beijava algumas crianças, acariciava, dava atenção, aplaudia
suas respostas, caprichava na nota. Mas ele, não. Não estava lá.
O tempo passou. E, no mesmo
dia em que se tornou adolescente, como num passe de mágica, ele deixou de ser
invisível e se tornou... suspeito. Suspeito crônico. Suspeito de todos os males
que acometiam a comunidade em que vivia. De todos os males da sociedade.
E, no
Brasil, se você é suspeito, já é culpado. Se não culpado do que suspeitam,
culpado por terem suspeitado de você. E, finalmente, ele se
tornou visível, na primeira página do noticiário policial.
Mas essa história não
termina aí. Seria triste demais...
Aquele menino
tinha uma irmãzinha caçula, tão invisível quanto ele. E, como ainda era
criança, ela acreditava na existência de um velhinho que trazia presentes no dia
de Natal. As outras crianças o chamavam de Papai Noel. Como a mãe, para ela,
era Iyá e o pai, Baba, resolveu chamar o velhinho de Baba Noel. E, como as
demais crianças, ela também escreveu uma cartinha para ele.
E Baba
Noel começou a ler as cartinhas recebidas. Uma pedia boneca, outro queria bola,
outras, bicicleta, celular computador, vídeo game... Foi aí que ele abriu aquela
carta com um pedido estranho: “Para que eu possa me ver, me reconhecer, me identificar,
eu quero um espelho mágico”.
Só então Noel se deu conta
de que não era a primeira carta que ele recebia com esse pedido. Havia outras,
que ficaram esquecidas no fundo do baú de correspondências. Eram dezenas,
centenas, milhares. Caramba! Como arranjar espelhos para atender a tantos
pedidos?
Pela primeira vez ele se
sentiu incapaz. Decepcionar criança é o que jamais gostaria de fazer. Por isso
chorou. Chorou muito, intensamente. Suas lágrimas escorreram para fora da casa
e se misturaram às lágrimas de todas as crianças invisíveis de todo o mundo,
por todos os tempos, formando uma grande lagoa. O frio polar a congelou e o
frio de muitos corações humanos se encarregou de cristalizá-la.
Foi aí que passou por ali,
em trenós, uma caravana de peregrinos. Eles avistaram o imenso cristal e, com
muito esforço, o arrancaram do solo e o levaram para sua aldeia distante. Seus
magos artesãos lapidaram aquele cristal, durante anos, e o transformaram num gigantesco
espelho mágico que trazia em seu reflexo todas as nossas personalidades, nossas
culturas, nossas tradições, nossas realizações. Lá estão nossos ancestrais,
nossa forma de ser e de pensar o mundo. Esse, sim, é o nosso espelho.
No dia em que o espelho
mágico ficou pronto, todas as crianças, antes invisíveis, puderam ver seu
reflexo e refletir sobre elas próprias, sua gente, sua cultura, sua história. Aí,
descobriram que são belas, belíssimas, ricas, poderosas, não ficam a dever nada
a todas as demais crianças do planeta.
Olha só a maravilha de
sorriso que esse espelho revelou! E não é para menos, sobre a cabeça de cada uma
delas há uma coroa, uma mais linda que a outra. Sabe o porquê? São verdadeiros
reis e rainhas, legítimos herdeiros de civilizações gloriosas. E o melhor ainda
é que as crianças, que antes eram as únicas visíveis, ao se olharem também no
mesmo espelho, conseguem ver a si e às demais igualmente lindas. E passam a
amá-las e a conviver com elas em total harmonia.