quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O DIA EM QUE ENTREVISTEI UM REI

Início da década de 1990. Jornalista que se criou ouvindo sambas, boleros e bossa nova e que não tinha a menor dúvida de que "o rei do pagode" era o sambista Almir Guineto, fui editar Moda & Viola, uma revista especializada em música sertaneja e me deparei com o primeiro artista a receber este título... 

O rodeios, no Brasil, surgiram em Barretos, em 1947

O primeiro rodeio no Brasil -- onde no século XIX, existiam até touradas --, aconteceu, em 
1947, na cidade de Barretos, interior paulista. Oito anos depois, no dia 15 de julho, um grupo de jovens solteiros, que se declaravam economicamente autossuficientes, criou o Clube "Os Independentes" que, a partir do ano seguinte se tornou responsável pela realização da Festa do Peão de Boiadeiro mais importante da América Latina. Cerca de 40 anos depois, essa Festa passou a fazer parte do calendário mundial de rodeios, mesclando os desafios de valentes peões, montados em touros e cavalos bravios, uma mega feira de produtos específicos do mundo agrário e grandes shows.

O fascínio de Almir Sater pelo veterano Tião Carreiro
E lá estávamos nós, o repórter-fotográfico Inácio Teixeira e eu, bem perto do palco, na noite principal da Festa, naqueles anos 90, saboreando, mas ávidos pelo o término do show, para podermos entrevistar os cantores, compositores e violeiros Almir Sater e Tião Carreiro. 
 
Para a juventude presente no Parque, projetado por Oscar Niemeyer, com cerca de 50 mil pessoas, a grande estrela da noite era Almir Sater que, na época, protagonizava a novela “Ana Raio e Zé Trovão”, exibida pela TV Manchete, em que vivia par amoroso com a atriz Ingra Liberato.

De repente, arrebentou-se uma das cordas da viola de Tião Carreiro. Diante dos olhos surpresos da multidão, Sater entregou seu instrumento ao velho violeiro e apanhou a viola avariada para ser encordoada e afinada por um roadie de palco. A humilde atitude do jovem violeiro foi aplaudida em pé pela multidão. 

Terminado o show, Almir concedeu-me entrevista, a quarta ou quinta que eu realizava com ele para aquela revista e para o jornal Diário Popular, onde fui editor de Cultura. Quando me dirigi a Tião Carreiro, ele alegou cansaço e me disse: “Te dou entrevista, amanhã, na casa de Rose Abrão”.

 

MAS QUEM É ROSE ABRÃO?

O "Sobrado da Alegria"

Aquela era a primeira vez em que estávamos cobrindo a Festa do Peão de Boiadeiro. Não conhecíamos ninguém na cidade, nem fazíamos ideia de onde ficava a tal casa e desconhecíamos, inclusive, quem seria essa pessoa mencionada pelo músico. Pergunta aqui, pergunta ali, e acabamos chegando no número 118 da Rua 30, na esquina da Avenida 47, no "Sobrado da Alegria", que João Pacífico -- o famoso compositor de "Cabocla Tereza" e de "Chico Mulato" -- chamava de “quartel general dos violeiros”. 

Subimos os dois lances de escada, encontramos a porta aberta. No interior do sobrado, uma sala imensa, com uma longa mesa de uns cinco metros de comprimento, com ricos fazendeiros sentados em ambos os lados. Lá no fundo, na ponta da mesa, estava o “rei do pagode”, Tião Carreiro, sendo reverenciado por todos os presentes.

O anfitrião, Rose Abrão , nos recebeu de braços abertos, como se nos conhecesse, há muito tempo. Nos convidou a almoçar e ele próprio nos serviu o churrasco. Um dos fazendeiros da cidade de Olímpia, sentado a meu lado, cuidou de me ambientar. Contou que, em vez de gastarem seu dinheiro em hotéis, nos dias da Festa, eles preferiam se cotizar e ficar hospedados no sobrado de Rose Abrão, um comerciante de cereais, cujo nome verdadeiro era Gaze Abrão, e que, como eles, era apaixonado pela música de viola.
Rose Abrão: viola, a paixão

Havia uma boa razão para se hospedarem na casa de Abrão, desde o tempo em que ele residia no número 1.126 da Avenida 47, na esquina da Rua 28, antes de mudar-se, em 1984, para o "Sobrado da Alegria": eram as festas que ali se realizavam e que duravam a noite inteira, com a presença de grandes e famosos violeiros e belas moças, durante todos os dias da Festa do Peão de Boiadeiro.

Boiada ao estilo do velho Oeste, rumo a Barretos

O que mais Inácio e eu ouvimos dos fazendeiros, naquela mesa, foram façanhas, que se iniciavam em suas propriedades em Minas Gerais, ou em Goiás, ou no Mato Grosso, como: “Vou trazer 12 mil cabeças de gado – garantiu um deles –, pela estrada, no estilo do Velho Oeste. E, chegando na ponte do Rio Pardo, mato um boi e ponho pra assar no rolete, em homenagem ao Tião, nosso rei. Quem chegar vai comer de graça e à vontade.”

 

SUA MAJESTADE, O REI!!!

Sim. Realizei a tão esperada entrevista, numa sala em separado, para desencantos dos poderosos súditos de Sua Majestade, que se deleitavam com a viola e a voz de Tião Carreiro, o mineiro de Monte Azul, quarto dos sete filhos – quatro meninos e três meninas – do casal de lavradores Orcissio Dias Nunes e Julia Alves das Neves. Ali estava um artista caboclo – na verdade, cafuzo, descendente de negros e indígenas –, que tinha o poder de transportar nosso espírito metropolitano para a roça e nos apresentar a vida caipira, nas suas mais belas cores.

Casa em que nasceu, em Monte Azul 

Era bastante humilde a casinha, onde nasceu José Dias Nunes, nome que o menino recebeu na pia batismal, numa pequena igreja do extremo Norte do sertão mineiro, em dezembro de 1934. O registro, em cartório, só aconteceu muito anos depois, quando foram feitas as certidões de nascimento dos sete filhos do casal. A seca, na região expulsou a família de Monte Azul para o interior do estado de São Paulo, na cidade de Paulópolis, onde seu pai faleceu, meses depois, deixando-lhe de herança seu primeiro violão.

A solução encontrada por Dona Júlia, foi mudar-se para a casa de sua mãe, Dona Porcidonia, em Flórida Paulista. Passado um tempo, nova mudança, desta vez para Valparaíso. José nunca frequentou escola. Alfabetizou-se sozinho lendo velhos jornais, em que vinham embrulhadas as compras. Também de maneira autodidata, começou a dedilhar o vilão e a descobrir os acordes.

Ainda adolescente, trabalhando de garçom no restaurante de hotel de Manoel Padeiro, nas horas vagas, cantava músicas populares. Os elogios a seu timbre barítono, o incentivaram se unir ao primo Valdomiro, na formação da dupla Zezinho e Lenço Verde. Com esse nome a dupla se apresentou no circo Giglio e no programa “Assim canta o sertão”, que ia ao ar, aos domingos, na rádio local.

Participou de outras duplas, com nomes variados, tocando violão, até encontra-se com a viola, num circo, na cidade de Araçatuba, no interior paulista. Contou, na entrevista, que o instrumento pertencia a Tinoco, da “Dupla Coração do Brasil”, Tonico e Tinoco. Não tardou a ganhar a sua própria viola, pintada por um artista plástico, daquela mesma cidade. Sua maneira de tocar se inspirava na do violeiro Florêncio, da dupla Torres e Florêncio. E José Dias Nunes adotou o nome artístico de Zé Mineiro, na mesma época em que conheceu Nair, com quem, se casou, meses depois. 


O casal Nair e Zé Mineiro

COM PARDINHO, RUMO A SÃO PAULO

Na cidade paulista de Pirajuí, em 1954, recém casado com Nair – com quem teve uma única filha, Alex Marli –, o ex-garçom conheceu o trabalhador braçal, com fortes traços indígenas, Antonio Henrique de Lima, que também cantava nas horas vagas e tocava violão. Com sua viola e o vozeirão grave, Zé Mineiro resolveu formar dupla com o novo amigo de voz aguda, que adotou Pardinho, como nome artístico. O curioso é que, na música sertaneja a voz grave é sempre a segunda, mas nesse caso, virou a primeira voz. Foi estrondoso o sucesso da dupla nas apresentações no circo Rapa Rapa.

Zé Mineiro e Pardinho, chegam à capital paulista

“Vocês precisam ir cantar em São Paulo”, os aconselhou, dois anos depois, o amigo Carreirinho (Adauto Ezequiel)Era o incentivo que faltava, para tomarem o rumo da capital, onde conheceram o famoso compositor e diretor da gravadora Chantecler, Teddy Vieira – da dupla Vieira e Vieirinha –, autor de, entre muitas outras pérolas sertanejas, “O Menino da Porteira”, “Boi Sem Coração” e “O Berrante”. Foi ele quem sugeriu que Zé Mineiro mudasse seu nome para Tião Carreiro. No mesmo ano, Tião Carreiro e Pardinho gravaram seu primeiro disco e, em seguida, desfizeram a dupla. Tião forma dupla com Carreirinho, e Pardinho, com Zé Carreiro (Lucio Rodrigues de Souza).

Tião Carreiro e Pardinho voltam a se unir, em 1960, para uma longa carreira de sucessos, graças principalmente à criação de um novo estilo musical que veremos, em seguida, além de cantarem também, modas de viola, cururus, cateretês, valseados, querumanas e até tangos.    

 

E O PAGODE, NESTA HISTÓRIA?

Em 1959, na Rádio Cultura de Maringá/PR, Tião Carreiro se apresentou com Zorinho (Ozório Ferrarezi), surpreendendo os ouvintes com um estilo musical que tinha como base o ponteado da viola cruzado com o violão, numa mistura do catira lenta com o recortado mineiro mais expressivo, um ritmo bastante dançante.

Teddy Vieira

Ao retornar a São Paulo, Tião mostrou o novo estilo aos amigos Lourival dos Santos e Teddy Viera, que comentaram: “parece um pagode” – nome dado aos bailes, em Minas Gerais –, e o ritmo foi batizado de “Pagode de Viola”, também conhecido como “Pagode Caipira” e “Pagode Sertanejo”. Os amantes da canção sertaneja raiz se apaixonaram, de imediato, pelo novo estilo e coroaram Tião Carreiro, o “rei do pagode”.

No ano seguinte dessa criação, o Brasil estava em polvorosa com a inauguração da nova capital do País, no interior do estado de Goiás, e a dupla homenageou o presidente da República, o descendente de ciganos, Juscelino Kubitschek, com o clássico sertanejo “Pagode de Brasília”. Este estilo musical se espalhou pelo Brasil afora e ratificou o título de “rei” ao seu criador. Não por acaso, a maioria das famosas duplas sertanejas tem, pelo menos, uma gravação de pagode de viola.

Parceiros: Carreirinho,
Paraíso e Praieiro

Fazendo parte do primeiro time da música caipira, Tião Carreiro e Pardinho também participaram de peças teatrais, em circos e casas de espetáculo, e do filme “Sertão em Festa” (1970), de Oswaldo de Oliveira. Ao desfazer-se a dupla, definitivamente, em 1978, Tião Carreiro teve outros parceiros, como Paraíso (José Plínio Transferettie Praiano (Almiro Jose Alves), com os quais gravou também guarânias, rasqueados e balanços. Dizia que sempre esteve aberto para o que o seu público queria ouvir.

Foi bastante produtiva a carreira de Tião Carreiro: 25 discos 78 rpm, com Pardinho e Carreirinho; mais de 50 LPs com variados parceiros; dois LPs contendo solos de viola caipira; e mais de 300 composições com importantes nomes da música sertaneja, como Teddy Viera, Dino Franco, Moacyr dos Santos, Zé Carreiro, Zé Fortuna, Carreirinho e Lourival dos Santos.

Faltavam poucos dias para Tião se submeter a uma cirurgia de transplante de rim, quando ele avisou a família de sua grave situação de saúde, motivada pelo diabetes. Complicações na operação o levaram à morte, aos 58 anos, em 15 de outubro de 1993, mesmo ano em que havia morrido, em 29 janeiro, o amigo Rose Abrão, o “padrinho dos violeiros”, que anualmente é homenageado pelo tradicional festival "Violeira", realizado em Barretos.

Eu gostaria de encerrar este texto com o famoso "Pagode de Brasília". Mas ouvindo-o com atenção, descobri um verso misógino -- desrespeita as mulheres --. Em respeito a elas, escolhi um disco gravado pelo "rei do pagode", em 1979, intitulado "Tião Carreiro - Em Solos de Viola Caipira", cuja primeira canção até lembra um "sambinha". E lá pelos 12:55, ouça o vozeirão de Tião Carreiro, cantando um samba "de responsa", bem ao estilo das crônicas de Adoniran. Pegue sua melhor companhia e saia pagodeando!