terça-feira, 3 de setembro de 2019

“... e todos sabem como se tratam os pretos...”


Mais do que um verso da canção “Haiti”, de Caetano Veloso, há um consenso mundial sobre esse “tratamento”. Basta um ligeiro olhar para o Continente Africano para entendermos, até mesmo, as raízes do genocídio da juventude negra, em nosso País.



Imagina a pompa da chegada ao palácio do “chanceler de ferro” do Império Alemão, Otto von Bismarck, dos imponentes chefes de Estado dos países europeus, naquele 15 de novembro de 1884, para darem início à Conferência de Berlim. A cada carruagem que parava à porta do palácio, ouvia-se o anúncio de seu nobre ocupante vindo da Áustria-Hungria, da Bélgica, da Dinamarca, da Espanha, da França, da Grã-Bretanha, da Itália, da Noruega, dos Países Baixos, de Portugal, da Rússia, da Suécia, do Império Otomano e dos Estados Unidos da América do Norte. Nos dias que se seguiram, seria decidido o destino da África e dos povos que lá viviam.


O antigo Império do Congo foi repartido
entre Bélgica, França e Portugal 
Oito anos antes, em 1876, na Bélgica, por iniciativa do rei Leopoldo II, aconteceu a Conferência Geográfica de Bruxelas. Com a desculpa da "necessidade de se traçar rotas comerciais na África, elaborar a pacificação de chefes tribais -- como eles chamavam os imperadores, reis e chefes de Estados africanos, bastante prósperos -- e abolir a escravatura", o que essa conferência menor, na verdade, fez foi dividir em três partes territórios o antigo Império do Congo, no Sudoeste africano. Leopoldo II, o rei Bélgica, se tornou proprietário pessoal dos 2.345.000 km² que constituiu o chamado Congo Belga – o Congo Léopoldville –. Coube à França, uma área de 342.000 km², chamada Congo Francês – Congo-Brazzaville –. E Portugal oficializou sua propriedade sobre a região de Angola.

Oficialmente, a Conferência de Berlim, que terminou em 26 de fevereiro de 1885, iria apenas regulamentar o comércio naquela região já dividida e gerar assinaturas de tratados entre as nações participantes. Porém, aproveitando que ali se encontravam as maiores potências da Europa, estabeleceu-se a posse de todos os demais territórios ao longo dos 30.370.000 km² do Continente Africano e se oficializaram regras internacionais de colonização.

A história oficial, a dos vencedores, fala na necessidade de levar a civilização aos “selvagens” africanos e a Igreja Católica, em levar o Cristianismo para salvar aquelas almas. Uma e outra, porém, não conseguem esconder o objetivo principal que era a exploração das riquezas naturais e a escravização de seus povos. Nem mesmo se deram conta de que, era improvável essa “selvageria”, se já no século XII, 300 anos antes da chegada do primeiro europeu àquele Continente, já existia no Império do Mali três universidades: a de Tombuktu, ou Timbuktu (Sankoré), a Goe e a de Djenné.

A VORACIDADE NA PARTILHA

Otto von Bismarck lidera a Partilha da África
Sede da Conferência, a Alemanha, recém unificada e vitoriosa na guerra travada entre o Império Francês e o Reino da Prússia e, até então, sem nenhum território na África, escolheu, de cara, uma boa área para transformar em seu protetorado: O Sudoeste Africano – atual Namíbia –, Camarões, Tanganica e a região denominada Togolândia, que incluía a “Costa dos Escravos”, densamente populosa, abrangendo Togo, Benin e Nigéria. Portugal garantiu pra si as áreas gigantes de Angola e Moçambique, de olho na Guiné, e nas ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. O Império Otomano – Império Turco –, que estendia seu comércio e influências por várias regiões africanas, se contentou com a maior parte do Norte do continente, que simplesmente incluía o Egito e o Sudão.
A Inglaterra abocanhou a África Astral, ou Meridional, que inclui grande parte da costa do Oceano Índico até a África do Sul, que mais tarde disputou com a Holanda. A Espanha transformou o Marrocos em seu protetorado e açambarcou o Saara Ocidental, então, região das maiores jazidas de ouro, além de várias ilhas da costa atlântica.  A Itália pleiteou parte do Norte e a Etiópia. O resultado final gerou os 53 países hoje existentes no continente. 
Enfim, todo mundo garantiu sua fatia, sem se preocupar com os limites territoriais dos antigos impérios, estados e civilizações africanas. Etnias, muitas das quais secularmente em conflito entre si, foram obrigadas a compartilhar um mesmo território.
Os EUA participaram da Conferência apenas para garantir que nenhuma das potências europeias se apossasse da Libéria, território de 111. 369 km2 adquirido pela Sociedade Americana de Colonização, em1816, para realocação de ex-escravizados libertos e que havia se tornado independente em 1847.    

DA SEDUÇÃO AO MASSACRE

O Império do Congo, fundado no século XIII, por Ntinu Weene, posteriormente partilhado na Conferência de Bruxelas, era um reino bastante próspero e extenso no Sudoeste africano, e se estendia por uma vasta região que ia da costa atlântica até o Rio Cuango, no Leste. Ao Norte, pegava grande parte do atual Gabão e se estendia, ao Sul, até o Rio Cuanza, no Noroeste da atual Angola.
O Manicongo Nzinga-a-Nkuwu 
se converteu-se ao Cristianismo
e adotou o nome de D.João I

Seu líder maior tinha o título de Manicongo – Mwenekongo, em quimbundo, a língua local – e os líderes regionais de reinos, como Ndongo, Matamba, Cassenge e Quissama eram chamados de Mwenes. Uma das mais famosas Mwenes, que reinou em Matamba e depois também no Ndongo, foi Nzinga Mbande Cakombe, também conhecida como Ngola Nzinga Mbande, a Rainha Njinga, cantada até hoje em manifestações populares no nordeste brasileiro, como Rainha Ginga.

A diplomacia e a Fé cristã foram as armas utilizadas pelos portugueses ao chegarem àquele império em 1483. E foram tão sedutores que o Manicongo da época, Nzinga-a-Nkuwu, em 1509, converteu-se e transformou o Cristianismo na religião oficial do império, além de adotar o nome de D. João I do Congo. E a capital do império, até então M'Banza Kongo passou a se chamar São Salvador. A famosa Ngola Nzinga Mbande, de Matamba, também se converteu e adotou o nome de Dona Ana de Sousa. Foi a partir dessa sedução que se iniciou a colonização portuguesa naquele território africano e que resultou na maior extração e exportação de riquezas e de escravizados daquele continente.
Leopoldo II, o facínora

O sanguinário rei Leopoldo II da Bélgica, porém, não se deu ao trabalho de pensar em diplomacia, nem na conversão religiosa. Sua avidez era tamanha que se negou a fazer da parte do Congo conquistada na Conferência de Bruxelas, uma colônia belga. Todo aquele território era uma propriedade pessoal sua e foi explorada com requintes de crueldade e punições severas, sendo as mais brandas as mutilações, facilmente se estendendo às execuções em massa, principalmente após a Conferência de Berlim.

Cogita-se que tenha chegado a 15 milhões de pessoas dizimadas, pelas execuções, pela fome, por trabalhos forçados e até por doenças inoculadas na população congolesa. Amputar a mão de pessoas que não cumprissem sua cota diária de coleta da borracha para ser vendida no mercado internacional se tornou pratica corriqueira de soldados belgas, legitimados pelo rei, que fazia questão de controlar quantas mãos cada militar havia amputado para saber se suas ordens eram cumpridas.

Para justificar tamanha crueldade e barbárie, Leopoldo II concedeu uma entrevista ao jornal Publisher’s Press, de New Yok, publicada em 11 de dezembro de 1906, em que afirmou:  “Quando se trata de uma raça composta por canibais, há milhares de anos, é necessário utilizar métodos que acabarão com sua preguiça e o farão compreender o aspecto saudável do trabalho”.
Não foi por acaso que o povo de Katanga, a região das minas de diamante, recebeu do governo belga forte armamento, após a independência do Congo, em 1959, para lutar contra o novo governo, que teve como primeiro ministro Patrice Lumumba. Uma guerra civil fomentada pela antiga metrópole, uma vez que a independência contou com apoio da Rússia, em plena Guerra Fria. Lumumba foi executado diante dos Boinas Azuis, da Força e Paz da ONU que nada fizeram para impedir esse crime de interesse do crudelíssimo e genocida rei belga.


LABORATÓRIO DO HOLOCAUSTO


Guilherme II,
imperador
alemão
Quando queremos associar Alemanha com crueldade, geralmente citamos Adolf Hitler e o povo judeu. Porém é importante lembrarmo-nos de Guilherme II, o último imperador alemão, que também foi o rei da Prússia, de 1888 até sua abdicação, em 1918, ao final da 1a. Guerra Mundial. Dois anos após tomar posse, Guilherme II, que era neto da famosa Rainha Vitória, da Inglaterra, afastou o chanceler Otto von Bismarck e implementou uma política bélica sem precedentes na Alemanha. Com esse espírito, era impossível esperar que o governo alemão fosse mais complacente que o belga, com relação aos africanos de suas colônias. 
Este foi considerado o primeiro genocídio do século XX
e foi um laboratório para o holocausto do povo judeu


Entre 1904 e 1907, no chamado Sudoeste Africano Alemão, atual Namíbia, duas etnias populacionais quase desapareceram, os Hererós e os Namaquas, também chamados Namas. Liderados por Samuel Maharero, logo no início de 1904, um grande número de Hererós se rebelou contra a ocupação colonial alemã. O confronto se estendeu até agosto, quando o general alemão Lothar von Thotha derrotou os rebeldes na batalha de Waterberg e forçou os vencidos a se dirigirem ao deserto de Omaheke, onde uma quantidade enorme de pessoas morreu de sede. O mesmo aconteceu com pessoas da etnia Namaqua, que, em outubro do mesmo ano, também enfrentaram o exército alemão. Dezenas de milhares sucumbiram.
Os Hererós e os Namaquas, que não morreram de
inanição e de sede no deserto, acabaram enforcados 
Foram construídos cinco campos de concentração, para onde foram levadas principalmente mulheres e crianças onde os sobreviventes foram confinados e obrigados a trabalhos forçados. O alimento era super precário e a maioria morreu de inanição. Para completar, envenenaram os poços d’água e mataram os sobreviventes. 
Von Trotha e seus principais comandados

Porta-voz do cruel imperador alemão, o general Lothar von Trotha, cuja brutalidade repressora já era famosa combatendo rebeliões na China e no Leste africano, foi quem deu a ordem para que os poços d'água, 
no deserto, fossem envenenados. Ele enviou um ultimato aos rebeldes, dizendo: “Eu, general dos soldados alemães, envio esta carta aos Hererós. O povo Herero deve abandonar o país. Se negarem, forçarei sua partida com canhões. Qualquer Herero, com ou sem armas, será executado." Em 2.007, alguns descendentes de Von Trotha foram à Namíbia pedir perdão pelos atos de desumanidade do general. 
Soldados alemães, sob o comando do general
Lothar von Trothar, expulsando Hererós pro deserto

Esse episódio está descrito como o primeiro genocídio mundial do século XX e especialistas contam que serviu de modelo, décadas depois, para os campos de extermínio onde se executaram judeus, opositores e homossexuais, entre outros considerados “inimigos do Estado”, durante o nazismo. O governo alemão pediu desculpas, em 2004, pelas atrocidades, mas não admite negociar reparações financeiras aos descendentes dos executados.

Quatro ativistas namibianas da Fundação Ovaherero têm percorrido o mundo – estiveram também no Rio de Janeiro e em São Paulo – para palestrar a respeito do genocídio na Namíbia e do movimento que exige reparações por do governo alemão. São elas as Dras. Esther U. Muiniangue e Engenisie Jazepovandu Neumann e as Sras. Franciska Itiriua Kazenango e Uruanani Kara Matundu.  Segundo elas, os alemães aceitam financiar projetos de infraestrutura no país, mas não querem discutir indenizações aos sobreviventes. Outros países africanos têm feito as mesmas reivindicações e, no Quênia, 5.228 pessoas foram beneficiadas por reparações pelo Estado inglês. Porém, outras 41 mil reivindicam o mesmo direito. Para a instituição representada pelas quatro namibianas, que vieram ao Brasil, a luta por reparações é necessária e não há como aceitar outro tipo de negociação. Elas vieram a convite do PSTU e da CSP-Conlutas Central Sindical e Popular.
Descendentes do general Lothar von Trotha
foram à Namíbia, em 2007, para pedir desculpas
pelas ações de seu antepassado










Não basta aos alemães se
desculparem.O povo da Namínia,
diante de seus mortos,
espera muito mais
Um cemitério-memorial documenta o
genocídio ocorrido na Namíbia 
Em 2011, ossadas de vítimas do genocídio de hereros e manas foram
devolvidas para a Namíbia e recebidas pelo povo para as cerimônias funerais  



E como não relacionar esse histórico ao Brasil atual, onde um jovem negro é assassinado cada 23 minutos? Como não ver um reflexo disso tudo, ao analisar os dados do Mapa da Violência, entre eles a possibilidade de jovens negros serem assassinados no País, ser 2,88 vezes maior do que a de jovens brancos, segundo a 5ª edição do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), divulgada no ano passado. Muita gente troce o nariz, ao ouvir a expressão: “genocídio da juventude negra”. Mas que nome daria ao fato de que ocorrem 63 assassinatos de jovens negros por dia, totalizando 23 mil mortes por ano. O pior é sermos surpreendidos por autoridades festejando essas mortes, pelo fato de poderem chamar os mortos de “bandidos”, ou tentando isentar o Estado, com o argumento de “bala perdida”. Ou ainda um chefe de Estado tentando justificar a execução de um músico, com 80 disparos por parte e um batalhão do Exército, que disparou, por engano, mais de 200 projéteis contra o veículo “suspeito” por ele dirigido. A justificação do injustificável!