quinta-feira, 20 de abril de 2017

O GIGANTESCO RUGIDO DA LEOA

por Oswaldo Faustino

A história oficial não tem melindres em heroificar figuras cruéis e sanguinárias, com tanto que sejam homens e brancos. Raros heróis são negros.
Mulheres negras, então...


O que sabemos a respeito de Dandara, de Acotirene, de Aqualtune e de tantas outras mulheres que resistiram, bravamente, ao longo de cerca de um século, no Quilombo de Palmares? Quem foram Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Maria Soldado e outras heroínas que enfrentaram, ombro a ombro com seus companheiros e companheiras, a opressão, a exploração, os desmandos dos poderosos e cujos nomes e protagonismo ou não ficaram registrados no mármore da história ou são sub-valorizados? No máximo, são mencionadas como coadjuvantes. A historiografia prefere tratá-las, muitas vezes, como lendas improváveis, fruto da imaginação e da oralidade popular.


A Etiópia é um país que perdeu suas saídas para o mar
Hoje, vamos viajar a um país chamado Etiópia, que fica na região oriental do Continente Africano. Exceto os falashas, que são judeus, descentes de Menelik I, o filho do Rei Salomão com Makeda, a Rainha de Sabá, a maior parte da população é cristã, da linha ortodoxa. O Cristianismo é a religião oficial desde 325 D.C., só antecedida pela Armênia, no leste europeu, cristã a partir de 301 D.C.. Em Roma, a sede do Catolicismo, essa religião só foi oficializada em 380 D.C.. Pensar o Cristianismo como nascido na Europa é um grande engano e a desculpa para invadir a África, alegando ir civiliza-la e cristianizá-la, não passa de uma enorme mentira para disfarçar os objetivos reais: dominação, exploração de riquezas e escravização.    
Mas, voltando ao tema deste artigo – nossas heroínas –, mais ou menos no centro da Etiópia, encontraremos a capital, Adis Abeba. Lá chegando, perguntaremos a uma criança, em seus primeiros anos escolares: “Você conhece Taitu Bitul?”. E veremos como os olhos dela brilharão de orgulho. O curioso é que, se estivéssemos em Kingston, capital da Jamaica, no mar do Caribe, América Central, a reação da criança, provavelmente, seria muito parecida. Não será coincidência. Por conta do Ras Tafari, boa parte dos jamaicanos têm a Etiópia como referência. Mas, e você? Já ouviu esse nome: Taitu? 
Aí vêm os italianos!
Menelik II se torna negus e quer negociar 
Ao receber a Etiópia de presente, na Conferência de Berlim (1884/1885), que retalhou o Continente Africano e o repartiu entre as potências europeias, a Itália não fazia ideia da montanha rochosa coberta de espinheiros, precipícios e armadilhas que iria encontrar. Exibindo força e poderio bélico, o exército italiano teve de enfrentar a bravura da resistência etíope e só obteve poucas chances de uma aparente vitória. Numa batalha em 1889, o negus [1] Johannes IV foi assassinado. Para sucede-lo, os anciões do Conselho escolheram, entre vários rases [2], Sahle Marim, ras do Choa, que foi entronizado, em novembro do mesmo ano, com o nome de Menelik II. Ele não havia participado dos combates e se manifestou disposto a um convívio pacífico com os italianos.
Por conta disso, os invasores trocaram a violência pela diplomacia. Iniciaram-se negociações e com elas os engôdos, como o de textos dos acordos entre as duas partes, na versão em italiano dizerem coisas diferentes do que estava escrito em amárico [3], língua local. Desta forma, sem que Menelik soubesse, tudo o que seu país negociasse com outros, teria de passar pela intermediação da Itália e uma grande área da Etiópia foi transformada em colônia italiana, separando o restante do país do Golfo de Aden, que liga o Mar Vermelho ao Oceano Índico. Essa colônia recebeu nome de Eritreia.

Cara de anjo, olhos de águia
A imperatriz "Luz da Etiópia"
Foi quando surgiu no cenário, a bela Taitu Bitul que, apesar da pouca idade, já passara por quatro casamentos. Trazia no sangue um DNA semelhante ao de Makeda, a famosa Rainha de Sabá, da Abissínia – antigo nome daquela região –. O rei hebreu Salomão se apaixonou loucamente por Makeda e escreveu o livro bíblico "Cântico dos Cânticos", em homenagem a ela, durante a viagem dessa rainha a Jerusalém, quase 30 séculos antes. Menelik II também vinha de alguns casamentos frustrados, como Taitu. Ao conhece-la, reagiu com paixão semelhante à que ficou documentada na Bíblia, por Salomão. Com a união do casal, a jovem se tornou imperatriz, recebendo o título de "Luz da Etiópia". Se encarregou da construção de Adis Abeba  "Nova Flor", em amárico no local escolhido por ela, cidade que se tornou a capital. 
Taitu: capa de jornal em Paris
Demostrando ao pacífico Menelik II o quanto o estavam enganando, Taitu o convenceu de que, se continuassem as negociações, em pouco tempo todo o seu país se juntaria aos demais africanos que se tornaram colônias da Europa, campos de exploração e de escravização. Ela não tinha medo de ser impopular e era quem tomava as decisões mais duras. O marido tentava sempre “colocar panos quentes”, fosse qual fosse o conflito.
Porém, orientado por ela, Menelik decide ir à guerra e juntamente com a maioria dos rases, forma um exército com 100 mil combatentes, dentre os quais 25 mil mulheres. A própria Taitu segue para o front comandando uma legião de 5 mil homens e mulheres, responsável por ações estratégicas, cercando os inimigos em número muito inferior – 9 mil italianos e 11 mil eritreus –. A Itália concentrava toda a sua esperança em seu poderia bélico e na longa e vitoriosa experiência de comando do General Orestes Baratieri.

No front, Menelik, Taitu e alguns rases no comando do exército etíope
Metade do exército etíope se valia de rifles, metralhadoras e canhões, fornecidos pela Russia, pela França e outros países que apoiavam sua resistência, apesar de eles próprios terem colônias no Continente. O restante fazia uso de armas tradicionais, como lanças, escudos, espadas, arcos e flechas. Acima de tudo, do fortíssimo espírito de luta. O comando geral era dividido entre o próprio negus Menelik II com a imperatriz Taitu. Ambos não viviam aquartelados. Mantinham-se no front, onde eram auxiliados pelos rases de cada região, que comandavam seus  exércitos regionais.
O General Orestes Baratieri

O marketing X a realidade

A Itália tinha certeza de que era impossível à Etiópia resistir, por muito tempo, a seus planos imperialistas. Essa ideia era amparada exatamente no racismo, uma vez que, desde a Antiguidade, na Europa, "etíope" era sinônimo de "pessoa preta". Para a imprensa internacional da época, o comando italiano e seu governo faziam questão de demonstrar menosprezo pelo inimigo: "Menelik é fraco, inseguro e está nas mãos de sua esposa. Todo mundo está cansado e sua renúncia é esperada. [...] A opinião pública está pronta para a queda de Menelik. Ao primeiro golpe esse império desmorona", declarou o comandante Baratieri juntamente com primeiro-ministro da Itália, Francesco Grispi. 
Batalha de Adwa: a definitiva vitória dos etíopes humilhou a Itália  
Foi na planície de Adwa, que Orestes Baratieri encontrou seu Waterloo. Os mapas tinham vários erros, as comunicações falharam e as ordens do general foram mal-entendidas. Resultado: 7 mil italianos e eritreus mortos, 1,5 mil feridos e 3 mil prisioneiros. Entre os etíopes, o número de mortos e feridos também foi grande – 6 mil e 8 mil, respectivamente –, mas como esse exército tinha quase o sêxtuplo do inimigo, pode-se dizer que a baixa não os abalou. Em primeiro de março de 1896 os italianos foram humilhantemente expulsos e Francesco Crispi, renunciou.

Foi primeira vitória militar de uma nação africana sobre o colonizador europeu e a Etiópia se manteve livre e independente. Menelik e Taitu demoraram quase dois meses para conseguir realizar seu retorno triunfal a Adis Abeba, pois por onde passavam eram recebidos com festas que duravam dias.


Depois do primeiro avc de Menelik, Taitu assume o poder 
Em 1904, Menelik II completou 60 anos e sofreu o primeiro acidente vascular cerebral (avc), de uma série que se seguiu. Esse foi o mais fraco, mas ele perdeu a fala. O demais foram cada vez mais graves e, além de deixarem muitas sequelas, o levaram ao total desequilíbrio mental. A imperatriz Taitu Bitul assumiu o poder e governou o país por seis anos, para desencantos de vários rases. Eles organizaram complôs para depô-la, o que conseguiram em 1910. Menelik faleceu em dezembro de 1913 e a imperatriz, cinco anos depois. Ela entrou para a história como a mulher mais poderosa e admirada que a Etiópia conheceu, depois apenas da insuperável Rainha de Sabá.

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[1] Negus era o título maior de poder na Etiópia, equivalente a "rei dos reis";

[2] Ras - cujo plural é rases -, título de nobreza amárico, dados aos reis regionais (feudais) que se submetiam ao poder do Negus;
   
[3] Amárico, língua de origem semita, falada em toda a Etiópia. Não confundir com aramaico, outra língua semita falada na região do Oriente Médio. 

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Em tempo: Eu escolhi  TAITU para denominar uma personagem adolescente de meu próximo livro, a ser lançado, Ah! Se eu pudesse voar...”.  Nascida na Eritréia, país desmembrado da Etiópia, a garota orgulha-se demais por ter esse nome.  Como canta Nei Lopes, sobre seu ancestral, em sua composição Maracatu de Meu Avô, a jovem também quer cantar: "Taitu não foi qualquer uma..." 

Um comentário:

  1. A cada nova informação recebida sobre resistência de sociedades africanas ao domínio colonial, mas orgulho sinto dos povos
    ancestrais. Passar quase uma vida sem conhecer as histórias de luta e bravura desses povos, sem saber a verdades sobre o continente de origem, só poderá ser compensado quando eu tiver conhecimento suficiente para dar voz às suas histórias.

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