domingo, 24 de janeiro de 2021

PASSA DA HORA DE RESGATARMOS WINNIE


por Oswaldo Faustino

Acabo de ler uma pequena biografia intitulada: 
“WINNIE MADIKIZELA-MANDELA, A CHAMA NA LUTA CONTRA O APARTHEID"... e meu sentimento, neste momento, é de que este resgate é mais do que necessário.
 

Não. Não sonho com a canonização dessa controversa personagem, até porque, há muitas décadas, abandonei o maniqueísmo cristão para recuperar o que há de melhor no pensamento humanista. Mas espero que, após a leitura deste pequeno artigo, as pessoas reflitam e abandonem a caricatura cruel construída pelo CNA-Congresso Nacional Africano, pela Justiça sul-africana e pela mídia internacional. Aí, tomara que nos reencontremos com a essência da gigantesca Nomzamo Winifred Zanyiwe Madikizela Winnie Mandela.

O povo Xhosa ocupa as duas áreas mais ao Sul do país
Dizem que o maior sonho de Columbus Madikizela, ministro de Florestas e Agricultura do bantustão xhosa Mbongeni, no Transkei, e de sua esposa, a professora Nomathamsanqa Mzaidume – que carregava o nome ocidental de Gertrude – era de que o quinto de seus nove filhos fosse um menino. A criança que nasceu em 26 de setembro de 1936, porém, era uma menina. Tão intenso era o desejo dos pais, que ela veio com uma virilidade superior à dos irmãos: entre outras coisas, era campeã nas lutas e na montagem de armadilhas para caça de animais.

Winnie jamais se esqueceu da única surra que tomou da mãe por atirar uma lata com um prego contra uma irmã, acertando-a na face. Tinha menos de 8 anos, a idade em que estava quando Gertrude faleceu, ao dar a luz a um menino, em Bizana, para onde a família tinha se mudado. Apesar da pouca idade Winnie se encarregou da criação do irmãozinho. Pouco antes da mãe, sua irmã mais velha, Vuyelwa, também havia falecido, vítima de tuberculose. A Fé que a menina tinha em Deus sofreu um grande abalo.

Um ano depois, voltam para Mbongeni. Além das primeiras letras, foi o tempo em que se aproximou muito mais do orgulhoso e correto Columbus, ajudando-o nas atividades agropecuárias. Ao contrário de outros fazendeiros, porém, o pai valorizava, quase obsessivamente, a Educação, no sentido da formação escolar dos filhos.

DESCOBERTA DO APARTHEID

No mesmo ano da mudança para Mbongeni, 1945, Winnie teve sua primeira experiência com o apartheid – regime legal racista e segregacionista que imperou na África do Sul de 1948 até 1994, precedido por leis discriminatórias de 1913 e 1918 –. Foi um episódio bastante marcante para a menina de apenas 9 anos: a prefeitura local organizou uma festa para celebrar o fim da Segunda Guerra Mundial. Winnie, o pai, os irmãos e irmãs arrumaram-se, lindamente, para ir à festa e, ao chegar no local, foram proibidos de participar, pois o evento era "só para brancos".

A mente da menina fervilhava e a ela logo percebeu que, apesar de ser superior a 70% a população negra de Bizana, a cidade grande mais próxima, onde haviam residido, todas as lojas e serviços pertenciam a brancos. Uma cena específica ficou tatuada em sua mente: um homem negro sendo chutado e expulso de uma loja, por um jovem branco, apenas por ter partido um pão, dentro do estabelecimento, para alimentar a esposa, que estava amamentando seu bebê.

Mas não foi só atitude do rapaz, filho dos donos da loja, que deixou Winnie mais estupefata. Foi ver o homem expulso, com a esposa, que levava a criança no colo, não esboçar reação. Pior, ainda, foi ver o silêncio de seu próprio pai, um moralista convicto, diante daquela cena. Ela demorou a se dar conta de que a lei obrigava, muito cedo, as crianças negras a verem seus pais sendo humilhados, absolutamente impotentes.

Nessa época, ainda não havia lei separando as escolas para negros das destinadas aos brancos, o que só ocorreu na década de 1950. Assim, Winnie se beneficiou de uma formação básica de muita qualidade e obteve condições para ingressar, numa exigente escola missionária metodista, em Qumbu, que pertence a Shawsbury.

Dezesseis anos mais velho, divorciado e líder do CNA
Além de evoluir intelectualmente e se politizar, graças inclusive à irmã Nancy, que abandonou a escola e foi trabalhar para bancar os estudos de Winnie, destacou-se de tal maneira que, aos 22 anos, chamou a atenção de um importante líder da luta anti-apartheid, 16 anos mais velho que ela e divorciado de Evelyn Ntoko Mase. Seu nome era Nelson Rolihlahla Mandela, o Madiba -- nome no clã --, e o futuro, Tata, que quer dizer "pai" da nação. Vale lembrar que Rolihlahla, seu nome do meio, significa em xhosa: “aquele não dispensa uma boa briga”.

Casam-se em 14/07/1958

Não havia dúvida de que os dotes físicos, ou qualquer outro atrativo entre ambos era inferior ao anseio dos dois pela transformação política de seu país e das vidas de seu povo. Desde 1956, o Mandela, que Winnie conheceu, por quem se apaixonou e de quem recebeu o pedido de casamento, em 10 de março de 1957, era um dos líderes do grupo de réus do processo judicial “por traição”, conspiração, incitação a greve geral, entre outros crimes, atribuídos à cúpula do CNA.

O casal e a filha mais velha, Zindzi 

Nelson e Winnie ficaram noivos, em 25 de maio de 1958, se casaram, em 14 de junho do mesmo ano, em Johanesburgo e tiveram duas filhas: Zindzi e Zenani. 

Após o Massacre de Sharpeville, em Johanesburgo, em 21 de março de 1960, que resultou na morte de 69 manifestantes e ferimentos graves em 180 pessoas, o CNA abandonou a proposta de luta não-violenta e se tornou ilegal. Mandela entrou para a clandestinidade e viajou, sem autorização, por vários países da África e da Europa, denunciando o governo de seu país.

Winnie, Zindzi e Zenani

Na volta, em agosto de 1962, foi preso e, com os demais acusados, foi para julgamento. Em 1964, o veredito. A expectativa era de que ele e seu grupo fossem condenados à morte, mas o juiz surpreendeu, condenando-os a prisão perpétua, na Ilha Robben. Mandela só foi libertado 27 anos depois, em fevereiro de 1990. O apartheid ainda sobreviveu até 1994, quando ocorreram as primeiras eleições democráticas na Africa do Sul.

UMA VOZ TONITRUANTE  JAMAIS SE CALA

Desde a prisão do marido, Winnie se tornou a voz de Mandela, mundo afora. Não poucas vezes foi detida e confinada pela polícia. Mesmo assim, se na década de 1980, o mundo se mobilizou para por um fim ao apartheid na África do Sul, foi graças aos ecos de sua voz, replicados por uma infinidade de intelectuais, artistas, ativistas, indivíduos e instituições, em países dos seis continentes.

Mandela livre, em 11/02/1990 

Winnie conheceu o inferno, após as graves acusações contra ela e a seu time de futebol, no fim de seu relacionamento com Mandela, apresentadas pela Comissão de Direitos Humanos, encampadas pelo CNA, acatadas pela Justiça sul-africana e disputadas a dentadas pelas hienas midiáticas internacionais. Foi presa, pagou multa altíssima e caiu no ostracismo. Mas não deixou de ser uma figura de referência para o Congresso Nacional Africano, que governa a África do Sul desde as primeiras eleições democráticas que fizeram de Nelson Mandela o 1o. presidente negro da África do Sul e que, surpreendentemente, demonstrou ser agregador e não revanchista. Ele acabou dividindo com seu antigo inimigo, o ex-presidente Frederik Willem de Klerk o prêmio Nobel da Paz, em 1993.

Winnei faleceu em 02/02/2018
Não vou me debruçar sobre as acusações contra Winnie. Prefiro guardar para sempre sua apaixonante imagem da heroína que, com suas filhas, jamais desistiu de lutar e de deixar o apartheid nu diante dos olhos do mundo e totalmente desarmado para ser pulverizado. Na segunda-feira, 2 de fevereiro, de 2018, aos 81 anos, ela faleceu no Hospital Milkpark, em Johanesburgo, onde tinha sido internada para curar uma forte gripe. 

Em 1985,  o cantor e compositor Milton Nascimento lançou a canção "Lágrima do Sul", composta em parceria com Marco Antônio Guimarães, em homenagem a Winnie Mandela. Essa canção está no álbum "Encontros e Despedidas" e pode ser ouvida pelo YouTube.


Outra guerreira sul-africana que merece uma biografia por seu espírito revolucionário, na luta contra o apartheid e pelos Direitos Humanos, é cantora Zenzile Miriam Makeba, que ficou conhecida mundialmente pelo hit “Pata Pata”, de 1967, e que recebeu o apelido de "Mama África". De Makeba, sobre quem desejo, em breve, escrever um perfil biográfico, como este, deixo apenas sua frase famosa sobre Shaka Zulu, o grande líder estrategista da resistência do povo Zulu, cujas guerrilhas infernizaram a vida dos colonizadores europeus:

 “Dizem que Shaka Zulu era o Napoleão Negro. Enganam-se. Napoleão é que era o Shaka Zulu branco”.

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