por Oswaldo Faustino
Às vezes me flagro imaginando como seria a história do Brasil, cujo líder negro Zumbi dos Palmares foi assassinado em 1695, se também tivéssemos um Toussaint L’Ouverture?
Os
xenófobos – pequenos burgueses herdeiros de escravocratas, somados a boa parte da classe
média branca discriminadora e também alguns negros absolutamente desinformados –, que berram
contra a entrada e permanência no Brasil de pessoas oriundas do Haiti, se
conhecessem um pouquinho da história da Revolução Haitiana, do espírito libertário e do exemplo dado ao mundo todo por aquela nação... Aí, sim, teriam bons
motivos para urrar e se desesperar, como ocorreu aqui, há três séculos, com fazendeiros e
usineiros portugueses incapazes de conhecer outra forma de sistema produtivo, que não fosse a escravidão.
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Ilha Hispaniola, colônia dividida entre França e Espanha |
Imagine esta colônia portuguesa, no século
XVIII, chegando ao final de seu ciclo açucareiro e recebendo, através de marinheiros que aqui aportavam, notícias de que meio milhão de escravizados negros e mestiços, se rebelaram na ilha Hispaniola, também chamada Ilha de São Domingos,
no Mar do Caribe. Os revoltosos incendiaram os canaviais e executaram fazendeiros e senhores de engenho, seus familiares e homens de confiança. A parte ocidental daquela ilha, onde Cristóvão Colombo desembarcou em
1492, era colônia francesa e hoje é o Haiti. A oriental, colonizada pela Espanha, é atualmente a República Dominicana.
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Pelas notícias, ninguém era poupado |
Como ainda não havia televisão para manipular as
informações a favor dos interesses dos poderosos e como “quem conta um conto aumenta
um ponto”, a descrição do que estava ocorrendo, naquele ano de 1791, na ilha –
cujos habitantes originais pré-colombianos, os Taínos, pertencentes aos povos Arwaks, chamavam de Ayti –, aterrorizava cada vez
mais os colonos daqui. A opressão extrema era a única forma de administrar
conhecida pelos fazendeiros. Ao se sentirem dominados pelo pavor, eles
castigavam preventivamente, com maior rigor, os escravizados para afastar
qualquer possibilidade de plano revolucionário.
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Chacina: o temor dos fazendeiros daqui |
Assim,
quase um século depois de o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho ser financiado para destruir o Quilombo dos Palmares e assassinar seu poderoso líder Zumbi, que provocava
pesadelos nos governantes e produtores de açúcar, na Capitania do Pernambuco e nas demais, surgia outro
fantasma. E logo no Caribe das grandes plantations
de cana-de-açúcar, principal concorrente do Brasil no mercado açucareiro. Não
por coincidência, era outro fantasma negro a lhes tirar o sono e a ameaçar com a perda
de suas fortunas e seu poder paralelo, uma vez que a metrópole portuguesa ficava
tão distante e seus representantes na colônia eram facilmente corrompíveis.
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O exemplo haitiano de rebelião |
Não
podemos esquecer também de que, nesse mesmo período, na província de Minas Gerais, acontecia a
Inconfidência Mineira; que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, seria executado
por enforcamento, em 21 de abril de 1792; e que a França viva os primeiros horrores de sua turbulenta Revolução (1789-1799), levando dezenas à guilhotina. Talvez, o medo maior dos
poderosos daqui fosse mesmo o slogan “Liberté, Egalité, Fraternité” (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), difusor, dentre outras, de
ideias abolicionistas.
Quem é Tussaint L’Ouverture?
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L'Overture: estátua em Quebec, Canadá |
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Danny Glover: L'Overture Films |
Não por acaso, a produtora cinematográfica independente
criada pelo ator e ativista afro-americano Danny Glover, em sociedade com a roteirista e produtora Joslyn Barnes, se chama “L’Ouverture
Films”, em homenagem ao general François-Dominique
Toussaint, que nasceu escravizado, em 1743, na cidade de Cap-Haïtien,
na colônia francesa, localizada na parte norte da Ilha de São Domingos. Ao
conquistar a alforria, em 1777, ele entrou para o exército, onde se tornou um
excelente combatente e estrategista. Além do francês e do creole, falava latim o que o ajudou a tornar-se um grande orador e
líder da revolta. Três anos depois dos escravizados se rebelarem, em 1791, e
incendiarem as plantações, Toussaint conseguiu organiza-los e treina-los formando
um grande exército de voluntários. Pelo fato de ele identificar, com facilidade,
as falhas das forças coloniais, que chamavam de “aberturas”, deram-lhe o
codinome L’Ouverture.
Dez anos depois, ele consegue libertar da escravidão todos e todas que viviam na ilha
inteira, na colonia francesa e na espanhola.
Proclamou-se governador-geral vitalício de São Domingos. Todo o ano de 1802 foi de combates contra as tropas de Napoleão 1º, com
poucas derrotas e muitas vitórias. No ano seguinte, Toussaint
foi capturado e extraditado para a França, onde morreu, na prisão de Fort Joux, em Doubs.
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Jean-Jacques Dessalines |
A prisão de L’Ouverture e
sua morte, em 1803, não põem fim à revolução. Liderada agora, por Jean-Jacques
Dessalines, braço direito do herói e mártir, torna-se ainda mais feroz, até a sangrenta Batalha de Vertieres, quando, em 1º de janeiro de 1804, suas forças vencem o exército francês, e os expulsa definitivamente da
ilha. São Domingos torna-se independente, Dessalines se
declara imperador, seguindo o exemplo de Napoleão Bonaparte, e troca o nome do
país para Haiti. O processo de libertação desse país dá início à onda independentista e abolicionista por todas as
Américas.
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Batalha de Vertieres: a independência |
Derrotada militarmente, a França exigiu da ex-colônia, uma reparação, que equivaleria, nos dias atuais, a US$ 20 milhões. Essa dívida só foi quitada em 1947. Independente, após a sangrenta guerra racial, o Haiti vislumbra o pan-africanismo e libera a prática
do voduísmo, que era proibida. Isto leva muitos cristãos a afirmar que o país fez “pacto com o demônio e, por isso foi amaldiçoado”. Mais uma visão racista contra religião de matriz africana.
Isolamento total e boicote comercial, impostos pela Europa e pelos EUA, do qual
participam, inclusive, as nações latino-americanas que conquistaram a
emancipação, seguindo seu exemplo. Até mesmo o grande libertador da
América Latina, Simon Bolivar, que se
refugiou no Haiti, recebendo apoio total, dinheiro e armas para prosseguir na
luta, ao organizar à Conferência do Panamá, em 1826, negou-se a convidar a
representação haitiana. Desta forma, a colônia mais produtiva das Américas, no
início do século XIX, e a primeira a conquistar a Independência chega ao século
XXI como uma das mais pobres do Continente Americano.
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Papa e Baby Doc |
Somam-se a isso as quase três décadas da ditadura Duvalier – Papa Doc e Baby Doc – amparada no apoio da cruel milícia paramilitar, os Tontons Macoutes, criada em 1959, que chacinou ou fez desaparecer, até 1986, cerca de 150 mil haitianos. Para piorar vieram assolamentos por fenômenos naturais, que alguns atribuem à tal maldição.
Ao analisar a situação atual no Haiti, o doutor haitiano em Sociologia, Franck Seguy, descarta a ideia de maldição. Atribui os males vividos no país ao longo boicote, à desmedida exploração e, a partir de 2004, à recolonização pelo capital transnacional, através da “Internacional Comunitária”, e a uma série de desmandos que geram a reescravização de seu povo.
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Dr. Frack Seguy, sociólogo haitiano |
Em 2014, Seguy defendeu, na Unicamp, sua tese de doutorado: “A catástrofe de janeiro de 2010, a 'Internacional Comunitária' e a recolonização do Haiti”. Simultaneamente, a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização
no Haiti) completava 10 anos. Franck, que está no Brasil desde 2008, contestou que o papel dos soldados brasileiros, em
seu país, seria de “de agentes da paz e da solidariedade”, como apregoa a mídia
hegemônica. “A
ajuda internacional ao Haiti é a grande mentira que a mídia conta”,
afirma ele em suas entrevistas.
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"Haiti não está em guerra", Frank Seguy |
Para ele, a intenção de
conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, meta do
governo do presidente Lula, levou “o Brasil desempenhar um papel de sub-imperialista,
colaborando com os EUA, que terceirizaram a invasão militar
no Haiti por interesses comerciais próprios”. Quanto à
“missão de paz” o sociólogo afirma: “Tiveram que vender a ideia de que o país
estava em guerra e precisava ser pacificado” e conclui: “Não tem ninguém ajudando o Haiti. É o Haiti
que está ajudando todo mundo”. Essa ajuda seria satisfazer os objetivos
de todos os envolvidos, menos os do próprio Haiti.
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