sábado, 15 de abril de 2017

“O HAITI NÃO É AQUI!”, MAS SE FOSSE...

por Oswaldo Faustino

Às vezes me flagro imaginando como seria a história do Brasil, cujo líder negro Zumbi dos Palmares foi assassinado em 1695, se também tivéssemos um Toussaint L’Ouverture?



Os xenófobospequenos burgueses herdeiros de escravocratas, somados a boa parte da classe média branca discriminadora e também alguns negros absolutamente desinformados –, que berram contra a entrada e permanência no Brasil de pessoas oriundas do Haiti, se conhecessem um pouquinho da história da Revolução Haitiana, do espírito libertário e do exemplo dado ao mundo todo por aquela nação... Aí, sim, teriam bons motivos para urrar e se desesperar, como ocorreu aqui, há três séculos, com fazendeiros e usineiros portugueses incapazes de conhecer outra forma de sistema produtivo, que não fosse a escravidão.

Ilha Hispaniola, colônia dividida entre França e Espanha
Imagine esta colônia portuguesa, no século XVIII, chegando ao final de seu ciclo açucareiro e recebendo, através de marinheiros que aqui aportavam, notícias de que meio milhão de escravizados negros e mestiços, se rebelaram na ilha Hispaniola, também chamada Ilha de São Domingos, no Mar do Caribe. Os revoltosos incendiaram os canaviais e executaram fazendeiros e senhores de engenho, seus familiares e homens de confiança. A parte ocidental daquela ilha, onde Cristóvão Colombo desembarcou em 1492, era colônia francesa e hoje é o Haiti. A oriental, colonizada pela Espanha, é atualmente a República Dominicana.

Pelas notícias, ninguém era poupado
Como ainda não havia televisão para manipular as informações a favor dos interesses dos poderosos e como “quem conta um conto aumenta um ponto”, a descrição do que estava ocorrendo, naquele ano de 1791, na ilha – cujos habitantes originais pré-colombianos, os Taínos, pertencentes aos povos Arwaks, chamavam de Ayti –, aterrorizava cada vez mais os colonos daqui. A opressão extrema era a única forma de administrar conhecida pelos fazendeiros. Ao se sentirem dominados pelo pavor, eles castigavam preventivamente, com maior rigor, os escravizados para afastar qualquer possibilidade de plano revolucionário.
Chacina: o temor dos fazendeiros daqui 

Assim, quase um século depois de o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho ser financiado para destruir o Quilombo dos Palmares e assassinar seu poderoso líder Zumbi, que provocava pesadelos nos governantes e produtores de açúcar, na Capitania do Pernambuco e nas demais, surgia outro fantasma. E logo no Caribe das grandes plantations de cana-de-açúcar, principal concorrente do Brasil no mercado açucareiro. Não por coincidência, era outro fantasma negro a lhes tirar o sono e a ameaçar com a perda de suas fortunas e seu poder paralelo, uma vez que a metrópole portuguesa ficava tão distante e seus representantes na colônia eram facilmente corrompíveis.
O exemplo haitiano de rebelião 
Não podemos esquecer também de que, nesse mesmo período, na província de Minas Gerais, acontecia a Inconfidência Mineira; que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, seria executado por enforcamento, em 21 de abril de 1792; e que a França viva os primeiros horrores de sua turbulenta Revolução (1789-1799), levando dezenas à guilhotina. Talvez, o medo maior dos poderosos daqui fosse mesmo o slogan Liberté, Egalité, Fraternité” (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), difusor, dentre outras, de ideias abolicionistas.

Quem é Tussaint L’Ouverture?


L'Overture: estátua em Quebec, Canadá
Danny Glover: L'Overture Films 
Não por acaso, a produtora cinematográfica independente criada pelo ator e ativista afro-americano Danny Glover, em sociedade com a roteirista e produtora Joslyn Barnes, se chama “L’Ouverture Films”, em homenagem ao general François-Dominique Toussaint, que nasceu escravizado, em 1743, na cidade de Cap-Haïtien, na colônia francesa, localizada na parte norte da Ilha de São Domingos. Ao conquistar a alforria, em 1777, ele entrou para o exército, onde se tornou um excelente combatente e estrategista. Além do francês e do creole, falava latim o que o ajudou a tornar-se um grande orador e líder da revolta. Três anos depois dos escravizados se rebelarem, em 1791, e incendiarem as plantações, Toussaint conseguiu organiza-los e treina-los formando um grande exército de voluntários. Pelo fato de ele identificar, com facilidade, as falhas das forças coloniais, que chamavam de “aberturas”, deram-lhe o codinome L’Ouverture.
Dez anos depois, ele consegue libertar da escravidão todos e todas que viviam na ilha inteira, na colonia francesa e na espanhola. Proclamou-se governador-geral vitalício de São Domingos. Todo o ano de 1802 foi de combates contra as tropas de Napoleão 1º, com poucas derrotas e muitas vitórias. No ano seguinte, Toussaint foi capturado e extraditado para a França, onde morreu, na prisão de Fort Joux, em Doubs.
Jean-Jacques Dessalines
A prisão de L’Ouverture e sua morte, em 1803, não põem fim à revolução. Liderada agora, por Jean-Jacques Dessalines, braço direito do herói e mártir, torna-se ainda mais feroz, até a sangrenta Batalha de Vertieres, quando, em 1º de janeiro de 1804, suas forças vencem o exército francês,  e os expulsa definitivamente da ilha. São Domingos torna-se independente, Dessalines se declara imperador, seguindo o exemplo de Napoleão Bonaparte, e troca o nome do país para Haiti. O processo de libertação desse país dá início à onda independentista e abolicionista por todas as Américas.


Batalha de Vertieres: a independência 
Derrotada militarmente, a França exigiu da ex-colônia, uma reparação, que equivaleria, nos dias atuais, a US$ 20 milhões. Essa dívida só foi quitada em 1947. Independente, após a sangrenta guerra racial, o Haiti vislumbra o pan-africanismo e libera a prática do voduísmo, que era proibida. Isto leva muitos cristãos a afirmar que o país fez “pacto com o demônio e, por isso foi amaldiçoado”. Mais uma visão racista contra religião de matriz africana.
Isolamento total e boicote comercial, impostos pela Europa e pelos EUA, do qual participam, inclusive, as nações latino-americanas que conquistaram a emancipação, seguindo seu exemplo. Até mesmo o grande libertador da América Latina, Simon Bolivar, que se refugiou no Haiti, recebendo apoio total, dinheiro e armas para prosseguir na luta, ao organizar à Conferência do Panamá, em 1826, negou-se a convidar a representação haitiana. Desta forma, a colônia mais produtiva das Américas, no início do século XIX, e a primeira a conquistar a Independência chega ao século XXI como uma das mais pobres do Continente Americano.
Papa e Baby Doc
Somam-se a isso as quase três décadas da ditadura Duvalier  Papa Doc e Baby Doc – amparada no apoio da cruel milícia paramilitar, os Tontons Macoutescriada em 1959, que chacinou ou fez desaparecer, até 1986, cerca de 150 mil haitianos. Para piorar vieram assolamentos por fenômenos naturais, que alguns atribuem à tal maldição. 

Ao analisar a situação atual no Haiti, o doutor haitiano em Sociologia, Franck Seguy, descarta a ideia de maldição. Atribui os males vividos no país ao longo boicote, à desmedida exploração e, a partir de 2004, à recolonização pelo capital transnacional, através da “Internacional Comunitária”, e a uma série de desmandos que geram a reescravização de seu povo. 
Dr. Frack Seguy, sociólogo haitiano

Em 2014, Seguy defendeu, na Unicamp, sua tese de doutorado: A catástrofe de janeiro de 2010, a 'Internacional Comunitária' e a recolonização do Haiti”. Simultaneamente, a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) completava 10 anos. Franck, que está no Brasil desde 2008, contestou que o papel dos soldados brasileiros, em seu país, seria de “de agentes da paz e da solidariedade”, como apregoa a mídia hegemônica. “A ajuda internacional ao Haiti é a grande mentira que a mídia conta”, afirma ele em suas entrevistas.
"Haiti não está em guerra", Frank Seguy  
Para ele, a intenção de conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, meta do governo do presidente Lula, levou  “o Brasil desempenhar um papel de sub-imperialista, colaborando com os EUA, que terceirizaram a invasão militar no Haiti por interesses comerciais próprios”. Quanto à “missão de paz” o sociólogo afirma: Tiveram que vender a ideia de que o país estava em guerra e precisava ser pacificado” e conclui: “Não tem ninguém ajudando o Haiti. É o Haiti que está ajudando todo mundo”. Essa ajuda seria satisfazer os objetivos de todos os envolvidos, menos os do próprio Haiti.

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