terça-feira, 4 de abril de 2017

O QUE VOCÊ SABE SOBRE A ÁFRICA?

por Oswaldo Faustino





Miséria, fome, guerras civis, epidemias, analfabetismo, governos corruptos... é só o que a mídia veicula, diariamente, para defender a tese de que os africanos necessitam da tutela de europeus e dos EUA


Durante um jogo de futebol entre uma seleção africana e a brasileira, há alguns anos, um famoso locutor esportivo de TV, elogiando a velocidade dos jogadores africanos justificou: “Também, não é para menos. Eles têm aquele espaço todo para correr”. Era como se as dimensões de um campo de futebol, na África, não obedecessem às normas internacionais para esse esporte e tivessem vários quilômetros quadrados, floresta adentro. Com certeza, para ele, devia ser quase impossível dissociar africanos de mata virgem e, possivelmente, o técnico seria o Tarzan.

Outro exemplo comportamental também relacionado ao futebol foi um grande humorista, já falecido, que afirmou em seu programa de TV, sem qualquer tipo de constrangimento: "Desde aquele gol marcado pelo uruguaio Ghiggia no goleiro Barbosa, em pleno Maracanã, arrancando de nossas mãos a taça da Copa do Mundo de 1950, não confio em nenhum goleiro negro".     


Dr. Ricardo Alexino Ferreira
“Discriminação é falta de conhecimento”... com esse slogan, o Dr. Ricardo Alexino Ferreira, professor de comunicação da ECA/USP, abre o programa Diversidade em Ciência que ele apresenta pela Rádio USP FM. A frase explica, em apenas cinco palavras, o que aconteceu na narração daquele confronto esportivo, mesmo que a intenção fosse a de elogio àqueles atletas. E até mesmo o pensamento de que negros são maus goleiros. Quantas outras “pérolas” como essas são expressadas diariamente, por conta do desconhecimento, que resultam em tradicionais preconceitos e discriminações, já fazem parte da própria cultura brasileira?
Quando, no século XIX, as potências europeias – Alemanha, Grã-Bretanha, França,  Itália, Dinamarca, Espanha, Império Otomano (atual Turquia), Portugal, Bélgica, Holanda, Suécia, Rússia e Império Austro- Húngaro (atuais Áustria e Hungria) –, juntamente com os Estados Unidos da América, decidiram oficializar a partilha entre si do Continente Africano, dividiram antigos impérios, reinos, civilizações e estados, criando os atuais 55 países, sem respeitar etnias, línguas, costumes, separando parentes e juntando num mesmo território povos tradicionalmente inimigos. Esse partilhamento foi realizado durante a Conferência de Berlim, organizada pelo chanceler alemão Otto von Bismarck e realizada entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Entre as aberrações dessa tal Conferência, estava o Congo Belga, atual República Democrática do Congo, uma área com extensão de mais de 2,3 milhões de km2, que se tornou uma possessão pessoal do rei belga Leopoldo II.   
Conferência de Berlim -- 1884-1885 -- Europeus partilhando a África
Algumas das potências já exploravam regiões da África, há séculos, como era o caso de Portugal, cujas caravelas vasculhavam os mares desde meados do século XIV. Os povos africanos eram descritos pelos invasores do Continente como seres destituídos de civilização, de cultura, de escrita, da capacidade de autogovernar-se, além de dominados pelo paganismo. 

Os habitantes da região de Angola, por exemplo, eram denominados pelos colonizadores de "índios", o que desmistifica o história do porquê foi dado esse mesmo nome aos habitantes originais das terras que viriam a chamar-se Brasil: os navegantes pensavam ter chegado à Índias. Ou será que a cada viagem cometiam o mesmo engano? Por sinal, os "índios" de cá também eram chamados, curiosamente, de "negros da terra". Índios, tribos, negros, incapazes, indolentes, pagãos... meras desqualificações. 
O que a maioria dos ocidentais desconhece, até hoje, é que desde o século XII, três séculos antes da chegada de europeus ao Continente Africano, no Império do Mali – que compreendia os atuais países Mali, Senegal, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau e Burkina Faso –, já existiam três universidades, nas cidades de Gao, Djené e Tombucto, as duas últimas declaradas "patrimônio mundial". Em Tombucto, cidade com cerca de 100 mil habitantes, se encontrava a famosa Universidade Corânica de Sankoré, onde se realizavam estudos árabes, em especial islâmicos. Vinte cinco mil eram alunos dessa universidade: 1/4 da população local. Só um preconceito sem limites poderia considerar esses povos incivilizados, apenas por serem pretos.


Universidade de Sankoré, em Tombucto, Império do Mali, desde o séc. XII 

Mas, além do Império do Mali, também chamado de Mandinka, não podemos esquecer outros grandiosos como o de Gana, ou Wagadu, também chamado de Costa do Ouro; o Aksum, ou Axum, que abrangia os atuais países Etiópia e Eritréia; o do Congo; o Songhai; o do Zimbábue; o Oyo Yuribá; o Monomotapa; o reino do Benin; o Estado Zulu; e principalmente o Egito, com suas riquezas e tecnologias reconhecidas internacionalmente e que tinha uma medicina tão avançada que se realizavam até cirurgias de extração de tumor cerebral e em cuja cultura e filosofia beberam os gregos.
Há uma infinidade de revelações sobre o poderio político, as riquezas minerais, econômicas, filosóficas, técnicas, tecnológicas, científicas e medicinais aflorados no Continente Africano, muito antes de qualquer contato com “civilizadores” europeus. Pensar seus habitantes organizados em tribos incultas só pode ser concebido por motivações racistas.
Para se ter uma ideia da riqueza das civilizações lá existentes, a coleção História Geral da África, que foi produzida pela UNESCO, se compõe de oito volumes, com uma média de mais de mil páginas cada. Trata-se de uma obra, que apresenta a História pelo olhar de cientistas e pesquisadores em sua maioria africanos e cuja produção iniciou-se em 1964, com a participação de mais de 350 intelectuais e foi concluída cerca de 30 anos depois, com edições em inglês, francês e árabe.
Uma obra caríssima, que só milionários poderiam adquirir, mas seus volumes podem ser baixados gratuitamente pela internet, em PDF. Sua tradução para o português resultou de um convênio entre o escritório brasileiro da UNESCO, a antiga Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC), extinta pelo governo golpista atual, e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Um novo trabalho científico sintetizou essa obra gigantesca em dois volumes.
Eu pretendo voltar ainda muitas vezes a escrever sobre essa temática. Porém, quero estimular meus irmão e minhas irmãs afro-brasileiras a elevarem sua autoestima:

Ergam as cabeças e não admitam que lhes lancem à face a mentira de que pessoas de outras etnias podem nos discriminar, por sermos descendentes de escravos. Enganam-se! Descendemos, na verdade, de grandes civilizações africanas, de reinos prósperos, ricos material e culturalmente, de mulheres e homens escravizados pela avareza, pela prepotência, pela desumanidade e pelo racismo de governantes e empresários europeus – e de alguns africanos que com eles fizeram acordos espúrios –. As graves consequências estão aí até os dias atuais. Mas jamais desistiremos de lutar por reparações históricas e para revertermos o destino que o racismo inventou para o nosso povo.






"Somos negras panteras e exigimos nosso direito de contar nossa história. Cansamos de ouvir o caçador glorificando
a si próprio!" 

(O.F.)  

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