De 17 de dezembro de 2013 a 19 de
janeiro de 2014, ocupou um espaço da Caixa Cultural, em São Paulo, a exposição MEMORIAL
LUIZ GAMA, com imagens de personalidades negras, fotografadas por grandes
profissionais, recriando o universo do advogado, jornalista, poeta, abolicionista e
republicano Luiz Gonzaga Pinto da Gama. O curador do projeto, Max Muratório de
Macedo, me convidou a escrever o catálogo que foi aberto com o texto abaixo:
... só porque fotografia é Luz
Que Luz é essa que, noite após noite, atravessa os portões de ferro do
Cemitério da Consolação e desliza pelas avenidas, ruas, travessas, becos e
vielas?
Luz que busca reconhecer São Paulo, mas São Paulo já não há. Não aquela
que tão profundamente conheceu e que também não a reconhece. Duas estranhas,
frente a frente.
Também, pudera, a cidade vestiu de asfalto todas as pedras dos
calçamentos, nos quais se imprimiram as marcas profundas de suas pegadas de
felino, a urrar contra a escravidão e o império...
São Paulo de quatrocentões escravocratas, cidade oligarca despudorada de
ostentar seu baronato cafeeiro. São Paulo de orgulho bandeirante, voraz
expansionista, caçadora de esmeraldas e de indígenas, destruidora de limites
territoriais e de quilombos.
São Paulo de ontem? Não, de hoje, de sempre.
Uma das fotografias da exposição Memorial Luiz Gama
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Desliza até o Brás e
passa em frente à porta da igreja que assistiu à disputa pelas alças de seu
caixão. Ri, irônica, ao lembrar-se de poderosos, posando para lambe-lambes,
tendo suas mãos arrancadas a força das alças douradas, por mãos negras e
livres, livres e gratas, gratas e cerradas como quem brada: “Nunca mais!”
Luz nostálgica,
divagando em lembranças de lampiões a gás e de bondes puxados a burros. E
enojando-se ante a sombra de senzalas, grilhões, corpos negros marcados a
chibatadas e ferro em brasa.
Desliza morro acima,
em direção às Arcadas. O riso, agora, é quase gargalha, ao avistar seu retrato
iluminado numa parede da sala, onde lhe foi negado o diploma de Direito por
aqueles que se renderam aos conhecimentos desse rábula, devorador das obras
encadernadas em fino couro da rica biblioteca, frequentador na condição de
ouvinte. Ouvinte? Triste ilusão daqueles que mal conseguem ver além da cor da
pele. Tardiamente irão descobrir que esse “bode”, com defeito de cor, tem
ouvidos mocos a suas teorias racistas e uma boca imensa, sempre pronta a
tonitruar em defesa dos injustiçados, em cujas cabeças jamais passa a mão. Já
os vitimou, em vida, com humilhações em demasia. Não precisam de que também ela
se some aos falsos filantropos.
Rábula? Dá de ombros.
O que vale é a vitória nos tribunais. Libertar um após o outro, uma após a
outra... multidão. E qualificar de “legítima defesa” – diante da prepotência
dos que se julgam superiores, intocáveis –, a ação homicida do escravizado
contra seu escravizador.
Luz, que
“...libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava,
exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria
vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de
lucro...”, testemunha o amigo admirador.
Luz de Luís (raio)
Gama, cuja radiação é capaz de penetrar tão profundamente na matéria que a
transforma em sua própria essência. Libertária, a libertar não só africanos
raptados, acorrentados e arrastados para o lado de cá da apavorante Kalunga
Grande, sobreviventes do banzo, dos maus-tratos e da reificação. Mas também
corações e mentes, transformando jovens herdeiros das fortunas maculadas pelo
sangue negro, em malungos combatentes contra esse crime de lesa-humanidade.
Luz de riso incontido, diante de seu busto
altaneiro, no Largo do Arouche, olhando firme, de frente, para a rua que
homenageia seu inimigo visceral, um juiz municipal suplente, que insiste em
indeferir suas petições. Não. Tal atitude obsessiva não merece qualificação
melhor que “estúpido emperramento”... mesmo que lhe custe a demissão, na
repartição.
E continua a deslizar
por aqui por acolá, essa Luz baiana, que um dia ainda infante, foi vendida pelo
pai e falido, viciado em jogo, herdeiro perdulário de fortuna europeia. Luz
nascida livre, olhar assustado de criança que, por conveniência, a mentira
transformou em escrava. Dividida entre o temor do futuro incerto, a bordo do
patacho Saraiva, e a esperança de encontrar a mãe, assim como ela, acorrentada
e levada para o Rio de Janeiro.
A Luz de Luiz, meu livro mais recente,
com prefácio da Dra. Lígia Ferreira e
apresentação do rapper Rappi'n Hood,
traz num capítulo parte desse texto.
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Luz consciência, vibração, intensidade, tão amada por uma São Paulo, que a esqueceu. Luz Getulina, Luz Diabo Coxo, Luz Cabrião, Luz Coaraci, Luz Polichinelo, Luz Bodarrada, Luz Radical, Luz Maçônica... simplesmente Luz
Essa é a Luz que artistas engajados, como Walter Firmo, Eustáquio Neves, Denise Camargo e Eduardo Firmo imprimiram na camada fotossensível do papel. Luz na qual personalidades, como Luiz Melodia, Zeze Motta, Eduardo Silva, João Acaiabe, Gesio Amadeu, Sidney Santiago, Max Mu, Oswaldo Faustino mergulharam para dar-lhe voz e corporeidade.
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Bem-vindos à Luz!
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Alerta! Agarre, com
força essa Luz, antes que São Paulo amanheça e volte a se deixar anestesiar
pela amnésia.
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