domingo, 2 de abril de 2017

JAMAIS NECESSITAMOS TANTO DESSA LUZ

De 17 de dezembro de 2013 a 19 de janeiro de 2014, ocupou um espaço da Caixa Cultural, em São Paulo, a exposição MEMORIAL LUIZ GAMA, com imagens de personalidades negras, fotografadas por grandes profissionais, recriando o universo do advogado, jornalista, poeta, abolicionista e republicano Luiz Gonzaga Pinto da Gama. O curador do projeto, Max Muratório de Macedo, me convidou a escrever o catálogo que foi aberto com o texto abaixo:



... só porque fotografia é Luz


Que Luz é essa que, noite após noite, atravessa os portões de ferro do Cemitério da Consolação e desliza pelas avenidas, ruas, travessas, becos e vielas?
Luz que busca reconhecer São Paulo, mas São Paulo já não há. Não aquela que tão profundamente conheceu e que também não a reconhece. Duas estranhas, frente a frente.
Também, pudera, a cidade vestiu de asfalto todas as pedras dos calçamentos, nos quais se imprimiram as marcas profundas de suas pegadas de felino, a urrar contra a escravidão e o império...
São Paulo de quatrocentões escravocratas, cidade oligarca despudorada de ostentar seu baronato cafeeiro. São Paulo de orgulho bandeirante, voraz expansionista, caçadora de esmeraldas e de indígenas, destruidora de limites territoriais e de quilombos.
São Paulo de ontem? Não, de hoje, de sempre.
Uma das fotografias da exposição Memorial Luiz Gama
.
Uma Luz insubmissa de berço, parida por mãe nagô revoltosa, insiste em brilhar e em vagar noite adentro. Se, em memória, a apagaram, sua eterna insubmissão insiste em reacender-se mais e mais.
Desliza até o Brás e passa em frente à porta da igreja que assistiu à disputa pelas alças de seu caixão. Ri, irônica, ao lembrar-se de poderosos, posando para lambe-lambes, tendo suas mãos arrancadas a força das alças douradas, por mãos negras e livres, livres e gratas, gratas e cerradas como quem brada: “Nunca mais!”
Luz nostálgica, divagando em lembranças de lampiões a gás e de bondes puxados a burros. E enojando-se ante a sombra de senzalas, grilhões, corpos negros marcados a chibatadas e ferro em brasa.

Desliza morro acima, em direção às Arcadas. O riso, agora, é quase gargalha, ao avistar seu retrato iluminado numa parede da sala, onde lhe foi negado o diploma de Direito por aqueles que se renderam aos conhecimentos desse rábula, devorador das obras encadernadas em fino couro da rica biblioteca, frequentador na condição de ouvinte. Ouvinte? Triste ilusão daqueles que mal conseguem ver além da cor da pele. Tardiamente irão descobrir que esse “bode”, com defeito de cor, tem ouvidos mocos a suas teorias racistas e uma boca imensa, sempre pronta a tonitruar em defesa dos injustiçados, em cujas cabeças jamais passa a mão. Já os vitimou, em vida, com humilhações em demasia. Não precisam de que também ela se some aos falsos filantropos.
Rábula? Dá de ombros. O que vale é a vitória nos tribunais. Libertar um após o outro, uma após a outra... multidão. E qualificar de “legítima defesa” – diante da prepotência dos que se julgam superiores, intocáveis –, a ação homicida do escravizado contra seu escravizador.

Luz, que “...libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro...”, testemunha o amigo admirador.

Luz de Luís (raio) Gama, cuja radiação é capaz de penetrar tão profundamente na matéria que a transforma em sua própria essência. Libertária, a libertar não só africanos raptados, acorrentados e arrastados para o lado de cá da apavorante Kalunga Grande, sobreviventes do banzo, dos maus-tratos e da reificação. Mas também corações e mentes, transformando jovens herdeiros das fortunas maculadas pelo sangue negro, em malungos combatentes contra esse crime de lesa-humanidade.

Luz de riso incontido, diante de seu busto altaneiro, no Largo do Arouche, olhando firme, de frente, para a rua que homenageia seu inimigo visceral, um juiz municipal suplente, que insiste em indeferir suas petições. Não. Tal atitude obsessiva não merece qualificação melhor que “estúpido emperramento”... mesmo que lhe custe a demissão, na repartição.

E continua a deslizar por aqui por acolá, essa Luz baiana, que um dia ainda infante, foi vendida pelo pai e falido, viciado em jogo, herdeiro perdulário de fortuna europeia. Luz nascida livre, olhar assustado de criança que, por conveniência, a mentira transformou em escrava. Dividida entre o temor do futuro incerto, a bordo do patacho Saraiva, e a esperança de encontrar a mãe, assim como ela, acorrentada e levada para o Rio de Janeiro.
A  Luz de Luiz, meu livro mais recente,
com prefácio da Dra. Lígia Ferreira e 
apresentação do rapper Rappi'n Hood, 
traz num capítulo parte desse texto. 
Luz a quem se negaram a comprar, não por questão humanitária, mas por temor a seu sangue malê. Luz adolescente que um dia apanhou a pena e nunca mais a largou. Luz combatente, revoltosa, transformadora, contemporânea, seja em que tempo for.

Luz consciência, vibração, intensidade, tão amada por uma São Paulo, que a esqueceu. Luz Getulina, Luz Diabo Coxo, Luz Cabrião, Luz Coaraci, Luz Polichinelo, Luz Bodarrada, Luz Radical, Luz Maçônica... simplesmente Luz

Essa é a Luz que artistas engajados, como Walter Firmo, Eustáquio Neves, Denise Camargo e Eduardo Firmo imprimiram na camada fotossensível do papel. Luz na qual personalidades, como Luiz Melodia, Zeze Motta, Eduardo Silva, João Acaiabe, Gesio Amadeu, Sidney Santiago, Max Mu, Oswaldo Faustino mergulharam para dar-lhe voz e corporeidade.
.
Bem-vindos à Luz!

Alerta! Agarre, com força essa Luz, antes que São Paulo amanheça e volte a se deixar anestesiar pela amnésia.



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