um conto de Oswaldo
Faustino, sobre fatos verídicos
São Paulo e sua história sempre me
fascinaram
e continuam fascinando.
A cidade tem fatos pouco conhecidos.
Contando,“até Deus duvida”.
O Beco dos Aflitos, já fez parte de um cemitério |
A Igreja de Nossa Senhora dos Aflitos |
Aflição inexplicável |
Desigualdade, uma tradição
Assim como a corrupção, os preconceitos e
discriminações, que justificam a desigualdade, habitam estas terras, desde a chegada
das caravelas de Cabral. Apesar da convivência estimular a mútua aceitação e
até gerar afetos, tanto os colonizadores quanto seus herdeiros jamais
abriram nem abrirão mão de seus privilégios. A crueldade e o menosprezo pelo outro, considerado inferior, tornaram-se uma tradição desde o Brasil Colonial, prosseguiram, mesmo depois da transferência da Família Real e da Corte Portuguesa
para as terras Tupiniquins. Sobreviveram ao 1º e ao 2º Império, entraram República adentro e perduram até os dias atuais.
Militares portugueses: privilégios |
Militares brasileiros: desprezo |
Isso justifica o ocorrido na cidade de Santos, na noite de 27 para 28 de junho de 1821, quando soldados brasileiros, brancos “sem pedigree”, indígenas, negros e mestiços, do 1º Batalhão de Caçadores, tratados diferentemente dos privilegiados militares portugueses, se rebelaram. Além dos soldos destinados a eles serem inferiores, Os salários deles estavam 5 anos atrasados. Integrar as forças militares era uma possibilidade de trabalho urbano para os homens livres. Naquela cidade litorânea, então, além da Marinha e da estiva, a Infantaria do Exército era uma boa opção de emprego para os alforriados.
Eram negros os líderes da revolta: o corpulento cabo
Francisco José das Chagas, o Chaguinha (ou Chaguinhas) e o mirrado soldado José Joaquim Cotindiba. Eles estimularam os demais ao enfrentamento e a invadirem um navio português. Durante o confronto, houve as mortes de um oficial e de outros membros da tripulação do navio. Todos os envolvidos na rebelião
foram presos e punidos, a maioria com exílio, e os dois líderes condenados à morte por
enforcamento.
Em São Paulo, o Campo da Forca
Diante de uma multidão Cotindiba e Chaguinha foram executados |
Cotindiba foi sorteado o primeiro a ser enforcado. Lida a decisão judicial, a corda foi colocada em seu pescoço e o carrasco abriu o alçapão do patíbulo. O tranco o estrangulou. Ao se constatar que estava morto, cortaram-lhe a cabeça, que foi posta numa caixa de madeira, com bastante sal grosso. Isso serviria para conserva-la, enquanto fosse levada por toda a Província, mostrando à população o que estava reservado para todo aquele que ousasse se rebelar.
Aí chegou a vez do Chaguinha e se seguiu o mesmo ritual. Quando o carrasco abriu o alçapão, o pesado corpo se precipitou. Dado o tranco, a corda arrebentou. O condenado caiu no solo, de uma altura de cerca de três metros. Ele se feriu, mas continuava vivo. Pela tradição, a pena poderia ser comutada, mas o
juiz, ali presente, ordenou que se arranjasse outra corda para a execução.
O
carrasco tomou a providência e, para surpresa geral, essa também se rompeu. Novamente
Chaguinha despencou ao solo. Surpreso, o povo começou a gritar:
“Milagre! Liberdade! Liberdade! Liberdade!”. Um grupo de pessoas foi ao palácio do governo pedir clemência para o
condenado. Mas o presidente da Província negou-se a assinar o perdão. Agora, providenciaram uma “corda” feita com tiras de couro trançadas. Também arrebentou. A multidão foi ao delírio. Furioso pelo fracasso de sua
empreitada, o carrasco o matou com golpes de porrete.
"Liberdade! Liberdade! Liberdade!", bradava a multidão |
Velas e cruz inspiram a criação, no local, de uma nova capela às almas dos enforcados |
Acha que é Lenda? Pergunte ao padre!
Aos
incrédulos, para os quais essa história não passa de uma lenda urbana,
recomenda-se consultar as atas da Câmara dos Deputados, onde consta um
depoimento do Padre Diogo Antônio Feijó, realizado em 1832, quando ele era regente do Brasil, enquanto o príncipe herdeiro, Pedro de Bragança, filho do imperador, não atingisse a maioridade.
O Pe. Diogo A. Feijó |
Feijó e frades capuchinhos do convento do Largo de São Francisco acompanharam as duas
execuções e se encarregaram das orações por suas almas. Lembrava-se bem dos fatos ocorridos, onze anos antes daquele depoimento, e declarou aos políticos: “Vi
com meus próprios olhos a execução do cabo Chaguinha, que se deu antes do
julgamento do pedido de clemência feito ao príncipe regente, D. Pedro
I. Ao iniciar o enforcamento, o cabo caiu porque a corda se rompeu. Como
não havia corda própria para enforcar, usaram laço de couro, mas o instrumento
não foi capaz de o sufocar com presteza. A corda novamente se partiu e o condenado
caiu ainda semivivo, já em terra, foi acabado de assassinar”.
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Ali sentada naquela cadeira, na capela de Nossa Senhora dos
Aflitos, a jovem repassa na mente e no coração todo
do sofrimento vivido por Francisco José das Chagas, e a total indiferença ou
desconhecimento com relação os ossos de tanta gente, de maioria preta, que se encontram sob os
alicerces daqueles edifícios e questiona: "Quantas mortes são necessárias para sustentar a Liberdade?". Quando consegue controlar
o choro, levanta-se e sai da capela, bastante aliviada. Nesse momento, avista uma senhora que bate três
vezes à porta da igreja chamando por Chaguinha. Agora entende exatamente o que isto significa.
Caminha em direção à praça e até sente vontade de sorrir, ao ler na placa da estação do Metrô: LIBERDADE. Apanha o transporte público para casa, pensando no que escreveu o dramaturgo britânico William Shakespeare: “Há mais mistérios, entre o céu e a terra, do que sonha nossa vã Filosofia”.
Caminha em direção à praça e até sente vontade de sorrir, ao ler na placa da estação do Metrô: LIBERDADE. Apanha o transporte público para casa, pensando no que escreveu o dramaturgo britânico William Shakespeare: “Há mais mistérios, entre o céu e a terra, do que sonha nossa vã Filosofia”.
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