sábado, 6 de maio de 2017

DA CRUEL PENA DE MORTE À LIBERDADE

um conto de Oswaldo Faustino, sobre fatos verídicos


São Paulo e sua história sempre me
fascinaram e continuam fascinando. 

A cidade tem fatos pouco conhecidos. 

Contando,“até Deus duvida”.


O Beco dos Aflitos, já fez parte de um cemitério
A presença daquela moça negra muito bem vestida, fotografando, na esquina da Rua dos Estudantes com o Beco dos Aflitos, pode ter dado a impressão, a quem a visse, de tratar-se de uma turista interessada em registrar a imagem da pequena capela em estilo colonial, no final daquela rua sem saída. Profissional de comércio exterior, ela também se interessa bastante em conhecer, entre outras coisas, locais e fatos relacionados com o povo afro-brasileiro. Ao parar em frente à velha porta da igrejinha, ocupavam sua mente lembranças de uma conversa, ocorrida semanas antes, sobre execuções por enforcamento, escravidão, cemitérios e, principalmente, sob a liberdade, por sinal o nome do bairro em que se encontrava.
A Igreja de Nossa Senhora dos Aflitos
Lá estava ela no interior da capelinha que, até o século XIX, fazia parte do Cemitério dos Aflitos, local onde se enterravam as pessoas que foram justiçadas por enforcamento. Você sabia que a maioria dos enforcados eram negros? Ali também eram enterrados os escravizados mortos, fosse qual fosse a circunstância, e os indigentes. A moça sentiu no ar uma forte energia que lhe causava aflição. Uma solícita funcionaria a recebeu, lhe vendeu velas e lhe contou a mesma história que ouvira, dias antes, e que despertou nela o desejo de conhecer aquele local. Ela porém, não esperava o que se seguiu: sentou-se numa cadeira e começou a chorar compulsivamente.
Aflição inexplicável
Afinal, o que teria causado nela tamanha aflição? Por que será que pessoas batem três vezes à porta, chamando pelo nome dele, fazem um pedido e, muitas vezes, se retiram sem entrar? O que há de verdadeiro nessa história? Em meio a tantos mistérios e lendas geradas pelo imaginário popular, o que realmente aconteceu? Se ali existiu um cemitério, para onde removeram os restos mortais dos que lá foram sepultados? Essa última indagação foi respondida pela funcionária, ao contar que operários da construção civil, que trabalharam na região, se surpreenderam com o encontro de ossos humanos, durante as obras de vários prédios. Em qualquer lugar do mundo esse encontro justificaria considera-lo um “solo sagrado” e, até mesmo, transformá-lo em sítio arqueológico.

Desigualdade, uma tradição

Assim como a corrupção, os preconceitos e discriminações, que justificam a desigualdade, habitam estas terras, desde a chegada das caravelas de Cabral. Apesar da convivência estimular a mútua aceitação e até gerar afetos, tanto os colonizadores quanto seus herdeiros jamais abriram nem abrirão mão de seus privilégios. A crueldade e o menosprezo pelo outro, considerado inferior, tornaram-se uma tradição desde o Brasil Colonial, prosseguiram, mesmo depois da transferência da Família Real e da Corte Portuguesa para as terras Tupiniquins. Sobreviveram ao  e ao  Império, entraram República adentro e perduram até os dias atuais.
Militares portugueses: privilégios
Militares brasileiros: desprezo












Isso justifica o ocorrido na cidade de  Santos, na noite de 27 para 28 de junho de 1821, quando soldados brasileiros, brancos “sem pedigree”, indígenas, negros e mestiços, do 1º Batalhão de Caçadores, tratados diferentemente dos privilegiados militares portugueses, se rebelaram. Além dos soldos destinados a eles serem inferiores, Os salários deles estavam 5 anos atrasados. Integrar as forças militares era uma possibilidade de trabalho urbano para os homens livres. Naquela cidade litorânea, então, além da Marinha e da estiva, a Infantaria do Exército era uma boa opção de emprego para os alforriados.
Eram negros os líderes da revolta: o corpulento cabo Francisco José das Chagas, o Chaguinha (ou Chaguinhas) e o mirrado soldado José Joaquim Cotindiba. Eles estimularam os demais ao enfrentamento e a invadirem um navio português. Durante o confronto, houve as mortes de um oficial e de outros membros da tripulação do navio. Todos os envolvidos na rebelião foram presos e punidos, a maioria com exílio, e os dois líderes condenados à morte por enforcamento.
    

Em São Paulo, o Campo da Forca

Os condenados à morte foram trazidos à capital da Província, para a execução. Na atual Baixada do Glicério, foram mantidos no presídio até a tarde de 20 de setembro, quando subiram a trilha, onde hoje é a Rua Tabatinguera. Na esquina da Rua do Carmo, entraram na Igreja da Boa Morte, para rezar à Virgem protetora dos que estão prestes a morrer. Depois, a dupla seguiu em direção ao Bairro da Pólvora, onde os dois passaram  a noite trancados na capelinha do cemitério dos Aflitos.
Diante de uma multidão Cotindiba e Chaguinha foram executados
Na manhã seguinte, a multidão tomava todo o espaço do Campo da Forca, ávida por ver a dupla caminhando pelo corredor da morte. O laço da corda dependurada era o prenúncio do que estava para acontecer. Naquele tempo, era comum se utilizar de corda feitas por feixes de barbantes, traçados entre si. 

Cotindiba foi sorteado o primeiro a ser enforcado. 
Lida a decisão judicial, a corda foi colocada em seu pescoço e o carrasco abriu o alçapão do patíbulo. O tranco o estrangulou. Ao se constatar que estava morto, cortaram-lhe a cabeça, que foi posta numa caixa de madeira, com bastante sal grosso. Isso serviria para conserva-la, enquanto fosse levada por toda a Província, mostrando à população o que estava reservado para todo aquele que ousasse se rebelar.
Aí chegou a vez do Chaguinha e se seguiu o mesmo ritual. Quando o carrasco abriu o alçapão, o pesado corpo se precipitou. Dado o tranco, a corda arrebentou. O condenado caiu no solo, de uma altura de cerca de três metros. Ele se feriu, mas continuava vivo. Pela tradição, a pena poderia ser comutada, mas o juiz, ali presente, ordenou que se arranjasse outra corda para a execução. 

"Liberdade! Liberdade! Liberdade!", bradava a multidão
O carrasco tomou a providência e, para surpresa geral, essa também se rompeu. Novamente Chaguinha despencou ao solo. Surpreso, o povo começou a gritar: “Milagre! Liberdade! Liberdade! Liberdade!”. Um grupo de pessoas foi ao palácio do governo pedir clemência para o condenado. Mas o presidente da Província negou-se a assinar o perdão. Agora, providenciaram uma “corda” feita com tiras de couro trançadas. Também arrebentou. A multidão foi ao delírio. Furioso pelo fracasso de sua empreitada, o carrasco o matou com golpes de porrete.
Velas e cruz inspiram a criação,
no local, de uma nova capela
às almas dos enforcados
Na manhã do dia seguinte, no Campo da Força, havia uma cruz de madeira rodeada por muitas velas. Policiais receberam ordem de destruí-la. No dia seguinte, nova cruz lá estava e mais velas acesas, o que aconteceu sucessivamente, por semanas, apesar da repressão policial. O bispo da cidade autorizou que se cercasse uma área onde foi mantida a cruz e se pudesse acender velas. Posteriormente no mesmo local foi construída uma capela que recebeu o nome de Santa Cruz das Almas dos Enforcados, inaugurada em 1887. Quase duas décadas antes, em 1870, o antigo Campo da Forca foi rebatizado de Largo da Liberdade. Liberdade também passou a denominar antigo Bairro da Pólvora.     

Acha que é Lenda? Pergunte ao padre!

Aos incrédulos, para os quais essa história não passa de uma lenda urbana, recomenda-se consultar as atas da Câmara dos Deputados, onde consta um depoimento do Padre Diogo Antônio Feijó, realizado em 1832, quando ele era regente do Brasil, enquanto o príncipe herdeiro, Pedro de Bragança, filho do imperador, não atingisse a maioridade.
O Pe. Diogo A. Feijó

Feijó e frades capuchinhos do convento do Largo de São Francisco acompanharam as duas execuções e se encarregaram das orações por suas almas. Lembrava-se bem dos fatos ocorridos, onze anos antes daquele depoimento, e declarou aos políticos: “Vi com meus próprios olhos a execução do cabo Chaguinha, que se deu antes do julgamento do pedido de clemência feito ao príncipe regente, D. Pedro I. Ao iniciar o enforcamento, o cabo caiu porque a corda se rompeu. Como não havia corda própria para enforcar, usaram laço de couro, mas o instrumento não foi capaz de o sufocar com presteza. A corda novamente se partiu e o condenado caiu ainda semivivo, já em terra, foi acabado de assassinar”.


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Ali sentada naquela cadeira, na capela de Nossa Senhora dos Aflitos, a jovem repassa na mente e no coração todo do sofrimento vivido por Francisco José das Chagas, e a total indiferença ou desconhecimento com relação os ossos de tanta gente, de maioria preta, que se encontram sob os alicerces daqueles edifícios e questiona: "Quantas mortes são necessárias para sustentar a Liberdade?". Quando consegue controlar o choro, levanta-se e sai da capela, bastante aliviada. Nesse momento, avista uma senhora que bate três vezes à porta da igreja chamando por Chaguinha. Agora entende exatamente o que isto significa.

Caminha em direção à praça e até sente vontade de sorrir, ao ler na placa da estação do Metrô: LIBERDADE. Apanha o transporte público para casa, pensando no que escreveu o dramaturgo britânico William Shakespeare: “Há mais mistérios, entre o céu e a terra, do que sonha nossa vã Filosofia”.


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