Ele estava farto de si próprio. Farto de verdade...
nem se lembrava mais de quando foi a última vez
em que se olhou no espelho.
nem se lembrava mais de quando foi a última vez
em que se olhou no espelho.
Era ainda jovem, bem jovem, mas vivia
se indagando de como deveria fazer mal ao Narciso, permanecer ali, na beira
daquele lago, dias infindáveis, olhando aquela figura que, por mais bonita que
pudesse ser, provavelmente, o tempo teria revelado não ser totalmente bela,
muito menos perfeita, como a princípio ele teria se imaginado.
Narciso, em infindável comtemplação |
Certamente, já havia ganho alguns quilos a mais, pela falta de exercícios, ou, quem sabe, até poderia ter se tornado esquelético, por não querer se afastar daquele local, para se alimentar.
A solidão espontânea, com certeza, deve ter lhe dado uma real valorização do outro, o que a autocontemplação obsessiva não lhe havia possibilitado ter. O outro, além de lhe servir como referência para as autoanálises, trazia uma vantagem que era a possibilidade de afastar-se, de nunca mais se encontrarem. De si, porém, isso era impossível.
Nem mesmo lhe era possível, assim como não foi para o mito Narciso, realizar um afastamento, como o existente entre o ator e o personagem e
entre o espectador e a história narrada que, de uma forma mais real e
autêntica, possibilita o surgimento de juízos de valor sobre o que, no palco, está sendo representado. Esta é a proposta do teatro épico de Bertolt Brecht.
Separar-se de si mesmo? |
Ele nasceu colado a si mesmo, como acontece nos raros casos de irmãos gêmeos siameses e, por mais desenvolvimentos que possam ter havido na Medicina, nenhuma cirurgia ou supostos avanços tecnológicos têm a capacidade de separá-lo de si.
O que fazer para tornar, ao menos, suportável a companhia de si próprio? Como transformar aquela relação doentia, em algo agradável, palatável, enriquecedor?
Uma corda, um laço, uma solução? |
Pensou que pensou, tremeu nas bases, chorou, riu da própria sorte,
sentiu-se à beira da loucura. Apanhou uma corda, subiu num toco, amarrou a
corda num galho de árvore, fez um laço corrediço e enfiou no pescoço pronto para
saltar...
Não. Não pode ser um guarda. Anjos não envelhecem |
Não. Aquela velhinha poderia até ser
bondosa e repleta de vivências e de boas ações, mas não podia ser um anjo --
anjos não envelhecem --. Envergonhado foi como ele se sentiu, ao ser flagrado numa
demonstração, tão evidente, de sua fragilidade, de sua nulidade.
"Ei!, o que você está fazendo aí,menino?" |
uma estrondosa gargalha.
A atitude da velhinha o incomodou. Como alguém pode achar graça no desespero de quem está a um passo do suicídio?
Coralina -- era esse o segundo nome de dona Cora -- fez um esforço enorme para controlar a galhada, que voltou a ser uma risada, depois um sorriso e terminou num ar complacente. Então, indagou: "Desistiu?"
Ele pensou que ela estivesse perguntando se havia desistido de suicidar-se... antes de ele responder, ela insistiu: "Desistiu de viver, de lutar, de buscar respostas para sua próprias angústias? Se desistiu, realmente, vá em frente, pois nada mais fará sentido".
Cora Coralina: uma ilusão coletiva? |
Essa resposta foi um choque. Como essa senhora tão idosa estava dizendo a ele, no auge de sua juventude, que a única solução era mesmo acabar com a própria vida? "Quer saber de uma coisa -- pensou --não vou dar esse prazer a ela, nem a ninguém". Tirou o laço do pescoço e desceu do toco...
Cora Coralina segurou no braço dele, se amparando. Parecia muito cansada, mas
o convidou a caminharem juntos. Depois
de alguns passos, em silêncio, começou
a falar. Não para ele, mas para si própria:
"Desistir... eu já pensei seriamente nisso, mas nunca me levei realmente a sério; é que tem mais chão nos meus olhos do que o cansaço nas minhas pernas, mais esperança nos meus passos, do que tristeza nos meus ombros, mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça".
Até hoje, aquele velhinho passa horas... |
Um encontro inesquecível!... sempre sorri e fica refletindo a respeito:
"Será que Cora Coralina existiu de verdade? Ou foi uma ilusão coletiva para a gente começar a suportar, com valentia e doçura, o peso de viver, se tornando a melhor companhia que podemos ser para nós mesmos?"
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