por Oswaldo Faustino
Em tempos de pesadelos, é sempre muito bom sonhar, novamente, nossos mais belos sonhos já sonhados
Era um sobradinho, numa rua da Moóca, bairro de classe média, na Zona Leste paulistana. Um sobrado desses que têm um portão baixo e uma pequena área de entrada, com a frente em forma de arco (como os da foto ao lado) e chega-se à porta, cerca de uns dois metros depois do portão. Porta aberta, de cara, se avistava à esquerda, na sala, um piano-armário de madeira escura. A vizinhança, na maioria de origem italiana ou nordestina, não fazia ideia de quem residia ali, mas certamente estava acostumada a ouvir a música que vinha daquela casa.
O morador era um homem negro de pouca conversa, que já havia ultrapassado os 50 anos, de cabelos escuros, à custa de pintura. Estranhamente, era sempre visto saindo, bem agasalhado, mesmo quando era Verão, todo início de noite e, muitas vezes, só voltava quando estava amanhecendo. Para onde será que ia aquele vizinho, que só o farmacêutico sabia chamar-se Alfredo? O nome encabeçava a receita com prescrição de medicamentos para problemas na próstata: Alfredo José da Silva Jr.
O ano era por volta da segunda metade da década de 1980 e, toda noite, um táxi parava em frente ao portão para apanhá-lo. Sempre o mesmo táxi, que ele havia contratado e que o levava pela Radial Leste, 23 de Maio, Bernardino de Campos, 13 de Maio e São Carlos do Pinhal. Parava em frente ao suntuoso edifício do Maksoud Plaza Hotel, onde ninguém o conhecia como Alfredo. Lá ele era o Johnny, Johnny Alf. Um nome estrangeiro, sugerido por uma amiga americana, nos anos de 1940, ou 50.
"É só olhar, depois sorrir, depois gostar / você me olhou, você sorriu, me fez gostar..." (O que é amar?)
"Seu Chopin, não vá ficar zangado / e ressentido pela divertida união que fiz / de sua inspiração a três tempos / de um chorinho meu..." (Seu Chopin, desculpe)
A música erudita perdeu um virtuose para a popular. Mas Alfredo não se sentiu atraído pelo samba das escolas de samba. Seu fascínio era as trilhas sonoras dos musicais hollywoodianos. Bach, Beethoven e Mozart foram nocauteados pelos irmãos Ira e George Gershwin e por Cole Porter. Também era covardia, pois estes compositores contaram com o reforço de Duke Ellington, Thelonious Monk, Oscar Peterson e mais um sem número de músicos do jazz que não economizavam improvisos e dissonâncias harmônicas. E foi essa dissonância o que mais impactou aqueles jovens músicos brancos da Zona Sul carioca dos anos 50, madrugada adentro, na Cantina do César, para a qual ele foi contratado por Dick Farney, outro gênio brasileiro do piano, da voz e do jazz. Depois, o seguiam pelas boates Monte Carlo, Mandarim, Clube da Chave, Drink, Plaza e o antológico Beco das Garrafas.
Eles se sentiam como que hipnotizados ouvindo aquele pianista negro que parecia ter um prazer à parte em desrespeitar, com os dedos e voz, sempre mais e mais, a matemática canônica musical. Ao deixarem as boates, os jovens músicos se enfurnavam no apartamento, ora de um, ora de outro, a tentar reproduzir as dissonâncias ouvidas, pouco antes, jurando que ali estava nascendo uma “bossa nova”.
"Olha, / somente um dia longe dos teu olhos / trouxe a saudade de um amor tão perto / e o mundo inteiro fez-se tão tristonho..." (Ilusão à toa)
Tudo isso devia habitar a mente de Alfredo quando, em 1955, se mudou para São Paulo, contratado pela boate Baiuca e pelo bar Michel. Sete anos depois, a saudade da maresia e da noite carioca o levou de volta ao Rio, onde Johnny se apresentou em casas noturnas, como a Bottle's Bar, a Litlle Club e a Top.
Numa quarta-feira chuvosa, o dia 21 de novembro daquele mesmo 1962, os jovens músicos da Zona Sul, que o idolatravam, invadiram o Carnegie Hall, de Nova York, deixando igualmente hipnotizadas as três mil pessoas que lotavam a plateia e os camarotes, entre elas, alguns dos mais famosos nomes do jazz. No palco era enorme a lista dos músicos que se apresentaram, encabeçada por Antônio Carlos Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Oscar Castro Neves, Sérgio Mendes, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Chico Feitosa, Milton Banana, Agostinho dos Santos, Sérgio Ricardo, Normando Santos, Dom Um Romão e outros menos famosos. Há quem jure ter visto o nome de Johnny Alf no programa impresso. Se estava na lista, alguém se esqueceu de avisar o músico que Tom Jobim apelidou de “Genialf”. E ele permaneceu por aqui.
Com uma pontinha de tristeza, mas entre risadas, gostava de contar um episódio envolvendo um alto executivo de uma multinacional norte-americana, que, durante o período em que trabalhou no Brasil, ficou hospedado no Maksoud Plaza. Todas as noites ele descia à boate 150 Nigth Club e sentava-se a uma mesinha próxima do piano. Nos intervalos, gostava de conversar com Johnny Alf. Terminada sua missão por aqui, retornou aos EUA. Tempos depois, voltando ao Brasil, fez questão de rever o pianista e logo foi dizendo: “Johnny eu te vi em New York!” Surpreso, o músico indagou: “Eu!? Você sabe que nunca saí do Brasil...” E o outro explicou: “Eu passava por uma rua do Harlem, quando avistei uma placa, na porta de uma boate, dizendo: Tonigth the brazilian musician Johnny Alf! Desci correndo a escadaria para abraçar meu amigo e, ao chegar ao salão, havia um pianista negro tocando e cantando suas canções. E já fui perguntando: ‘Where's Johnny Alf?’. Ele respondeu: ‘I am Johnny Alf’. E eu retruquei: ‘No, no. I know Johnny Alf very well. We are friends and you are not him, no.". O músico afro-americano estava faturando, com a fama do compositor brasileiro.
"Tudo de graça a natureza dá / pra que que eu quero trabalhar?" (Rapaz de bem)
Nunca ter saído do País, nem o terem incluído no seleto cast que apresentou a Bossa Nova aos americanos, no Carnegie Hall, de Nova York, em 1962, não eram a maior mágoa desse cantor, compositor e músico por excelência. Ele contava que esse título coube à desclassificação de sua balada romântica Eu e a Brisa, no III Festival da MPB, da TV Record, em 1967, apesar do belo arranjo do maestro José Briamonte e da interpretação impecável da cantora Márcia: "Ah, se a juventude, que essa brisa canta, / ficasse aqui comigo, mais um pouco, / eu poderia esquecer a dor / de ser tão só, pra ser um sonho…”.
"Ser tão só...", um compositor cujos 21 LP’s se espalharam mundo afora e com composições gravadas pelos e pelas melhores intérpretes da MPB e do jazz. Alfredo não parecia ter nenhum interesse ou vocação ao glamour e a tornar-se popstar. Assim, seus rendimentos foram precários e a solidão uma companheira eterna. Com o agravamento do câncer de próstata e sem parentes, foi viver, por três anos, numa “casa de repouso”, em Santo André. Sua despedida dos palcos e do público foi num show em agosto de 2009, com a cantora Alaíde Costa, famosa nos tempos da Bossa Nova. Johnny Alf faleceu, aos 80 anos, em março de 2010, num hospital público da cidade em que vivia.
Sim, uma coisa temos de admitir: ele conseguiu realizar seu desejo de "ser um sonho...", expresso na canção Eu e a Brisa. Parafraseando a bela afirmação de Nelson Cavaquinho sobre Cartola, podemos também dizer que Johnny Alf “não existiu, foi um sonho”, que o Brasil sonhou... mas, infelizmente, se esqueceu.
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