quarta-feira, 12 de abril de 2017

MEMÓRIAS DE UM PAR DE MÃOS

 por Oswaldo Faustino

Geraldo Barbosa: pernas fracas, mas mãos fortes, relembrando sua história 

(matéria publicada na revista Raça Brasil, em 2012)

Aos 90 anos, as pernas de Geraldo Barbosa estão debilitadas pela artrite, para dilema de quem sambava com maestria, tocando pandeiro para acompanhar famosos cantores da MPB, como o seu xará, o sambista Geraldo Pereira. Mas as mãos continuam firmes, batucando como nos tempos gloriosos que não voltam mais.


Lá está ele, sorridente, sentado num banco de cimento, na calçada em frente ao prédio em que reside, no Engenho da Rainha, vizinho de Inhaúma, na zona Norte do Rio de Janeiro, no conjunto residencial Cidade do Som, construído na década de 60, pela Ordem dos Músicos do Brasil, para seus profissionais com muito talento e renda baixa. Na entrada, um dos seguranças revela que faz tempo que o pandeirista, cantor, compositor, ritmista, percussionista, pandeirista, cavaquinista e sanfoneiro Geraldo Barbosa desceu para esperar o jornalista que iria entrevistá-lo. A mão, de dedos finos e longos, se apoia numa bengala para ele caminhar lentamente rumo ao apartamento.

Tempos em que Geraldo Barbosa foi garçom no cassino
Tal como as mãos, a mente do mineiro nascido em Santana do Deserto, no ano de 1921, vibra em meio às lembranças: “Eu tinha pouco mais de 20 anos, quando cheguei a Petrópolis, região serrana do Rio, e fui trabalhar na fábrica do Café Condor. Trabalho pesado e muito mal pago, carregando na cabeça pesados sacas de café. Um dia encontrei um amigo de lá do meu arraial e ele perguntou: ‘em vez de ficar aí carregando peso e ganhar essa mixaria, por que não vai pedir emprego no cassino do Tênis Club, que vai ser inaugurado na 1º de março?’. Eu não sabia o que poderia fazer num cassino e ele explicou que era só dizer ao chefe francês que sabia fazer de tudo um pouco”.

E foi com essa “mentirinha inocente” que Geraldo entrou para um mundo glamoroso jamais imaginado, em seus tempos de Santana do Deserto, ganhando 250 mil réis, bom salário para a época. “Eu não sabia nem matar uma galinha. Vi o cozinheiro pegar no pescoço e nas pernas da ave, dar um tranco e ela cair durinha. Pensei que era moleza. Quando fiz o mesmo e soltei a bichinha, ela saiu correndo. E eu pensei: perdi meu emprego”. A solução foi prender a galinha numa morsa e cortar-lhe a cabeça. Aos poucos, Geraldo foi conquistando a simpatia da chefia. Nem mesmo as dezenas de prato que quebrava, ao lavar a louça, eram descontadas de seu salário. Ao contrário, foi promovido a garçom, ganhando 700 mil réis.

Com seu pandeiro e de smoking, realizando um sonho
O coração do jovem do interior, porém, acelerava quando via e ouvia uma das quatro orquestras que tocavam no cassino. A principal era a Brazilian Serenaders, do maestro Carlos Machado: “Era a coisa mais bonita do mundo! Nem nos filmes americanos vi uma igual. Um de seus músicos era o Russo do Pandeiro (Antônio Carlos Martins – 1913-1985), que fez parte do Bando da Lua, grupo que acompanhava Carmem Miranda, em shows nos EUA. As mãos dele em ação, me ajudaram a decidir o que realmente eu queria na vida: tocar pandeiro”.


Nasce um músico 



Cassinos empregavam muitos músicos, cantores e dançarinos
A gente nem imagina o que era a época dos cassinos, em que a boa música e o dinheiro rolavam soltos. Com os lucros do cassino do Tênis Club, construíram o famoso Cassino da Urca, o de Icaraí e o do Hotel Quitandinha. 

Era uma época em que homens e mulheres, até então perseguidos pela polícia por praticar a contravenção de fazer batucada, se transformaram em músicos profissionais  e conquistaram o direito de apresentar-se em grandes e belos palcos. No caso de Geraldo, pode-se dizer que foi azar de um, sorte do outro: “Ganhei um pandeiro de um detetive que trabalhava de segurança no cassino. Ele apreendeu de algum sambista na rua. Nesse tempo, era proibido andar portando padeiro, porque a polícia o considerava uma arma. Aí, eu ficava treinando em casa, enquanto ouvia o rádio. Assim, formei um grupo, Os Tangarás, para tocar no cassino e em programas de rádio, bem no estilo de Os Anjos do Inferno e de Quatro Ases e um Coringa”.

Cantora Leny Everson e seu tamborim 
Em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra, proibiu os jogos de azar em todo o País, atendendo a um pedido de Dona Santinha, sua mulher. Em consequência, foram fechados todos os cassinos. Geraldo se mudou para o Rio de Janeiro, onde encontrou o acordeonista Mario Lessa, no ponto dos músicos, na Praça Tiradentes. Com ele passou a tocar em boates. Às segundas-feiras ficava ali no ponto, entre os músicos mais velhos para conhecer os segredos da profissão e, assim, entrou para o primeiro time: “Os mais famosos davam festas em suas casas, e a gente encontrava uns 40, 50 músicos. Fui me enturmando e comecei a arregimentar instrumentistas para orquestras e conjuntos para tocar em bailes de carnaval, de debutante, de formatura, gafieiras e até para tocar nas mansões dos bacanas”. O pandeiro de Geraldo Barbosa já era quase tão famoso quanto o do Russo.

“O compositor Luiz Soberano me chamou para participar de uma gravação na Copacabana Discos, na Av. Brasil, e de lá só saí quando a gravadora fechou, 60 anos depois”, lembra com saudade Geraldo e continua a narrar a própria história: “Passei a arregimentar músicos para o programa do Silvino Neto, pai do comediante Paulo Silvino, e a liderar o conjunto que acompanhava Vicente Paiva, Altamiro Carrilho, Miguel Gustavo, tocando em todos os grandes clubes do Rio”.
Acompanhava, em shows, Geraldo Pereira, primeiro à esquerda 
Acompanhou inúmeros cantores como seu grande amigo e xará Geraldo Pereira, com quem aprendeu a fazer o samba sincopado. A lista dos demais inclui Blecaute, Elizete Cardoso, Ângela Maria, Carminha Mascarenhas, Gilberto Neves, Ataulfo Alves, Waldick Soriano, Gilberto Silva, Moacir Franco, Ciro Monteiro, Inezita Barroso, Leny Everson e até os sertanejos Chitãozinho e Xororó e João Mineiro e Marciano, entre muitos outros. Em matéria de percussão, ele domina todos os instrumentos, do leve triângulo ao pesado surdo treme-terra, além de tocar cavaquinho e sanfona.
Fim dos cassinos, restam as boates, bailes e festas em mansões


Chega de saudade?


Barbosa discorda do que diz esse que foi um dos maiores hits da Bossa Nova. Para ele tudo sempre há de ser saudade. Talvez seja porque ela o que o mantém vivo, com suas lembranças e a dor de saber que esse tempo, muitas das pessoas, os fatos e as circunstâncias vividas não voltarão jamais. Alguém precisa contar e recontar  essas histórias para quem quiser ouvir. Histórias como a dos bailes das segundas-feiras frequentados por malandros, vagabundos, cabelereiras e manicures, que para ele “eram os grandes bailes da história do Rio de Janeiro. O dono do salão não pagava os músicos e a gente jurava não voltar mais. Mas da segunda seguinte lá estávamos tocando, felizes da vida ”.

Um estudo para a capa do LP inédito
Sua grande alegria foi gravar um disco, cantando. Hoje tem um disco gravado com 12 sambas, que jamais cnseguiu lançar, apesar de atuar como arregimentador de músicos para os estúdios da gravadora Copacabana. Compôs "Maneiroso", um choro gravado pelo grupo Chapéu de Palha, além de três sambas em parceria com Wilson das Neves: "Essa nega", "Estou chegando" e "Sá nega", que também contou com a coautoria de Ineres, e mais de 40 músicas inéditas. 

Casado com Dona Miriam, com quem tem um casal de filhos e uma neta, não nega ter sido um grande namorador. Conta baixo para que a esposa, na cozinha, não ouça. Depois comenta: “Ela me atura há 40 anos. Não é, Fia?”. Miriam ri, balança a cabeça e admite: “Até hoje, ele é levado. Sai e some, parece que não volta mais”. Mesmo assim garante que não é ciumenta. O casal vive sozinho no apartamento que foi pintado por ninguém menos que o sambista Bezerra da Silva, “um grande pintor de paredes, mas folgado à beça”, gargalha o músico.

O Caboclo Cobra Coral 
A entrevista decorre em meio a vários sambas cantados por Geraldo Barbosa, que batuca firme e forte numa estante ao lado da poltrona. Alguns gravados, outros inéditos. Canta também dois pontos de Umbanda que compôs e gravou, ainda nos tempos dos discos de 78 rpm. Um em homenagem ao caboclo Cobra Coral, um espírito recebido por Miriam e outro para as crianças. “Tenho a maior fé nesse caboclo e nos erês.”. Conta com olhar marejado mirando o pequeno congá (altar) sobre a porta de entrada do apartamento, onde Yemanjá e o Cobra Coral reinam com altivez. Depois suspira e comenta: “Nestes meus 90 anos, já vi coisas de que até Deus duvida”.

(Gerando Barbosa faleceu na quarta-feira 16 de julho de 2014, na UPA-Unidade de Pronto Atendimento, no bairro carioca da Penha, onde havia dado entrada no sábado anterior) 






Um comentário:

  1. Parabéns pelo artigo. Pude encontrar referência ao meu Tio-avô Mário Lessa, músico, acordeonista, que fez dupla com o Geraldo Barbosa. Estou iniciando pesquisa sobre a carreira e história de Mário Lessa, que tocou muito na era de ouro dos grupos musicais dos anos 40, 50 e 60.

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